Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Imunizações e Doenças Transmissíveis. Manual de vigilância epidemiológica de eventos adversos pós-vacinação [recurso eletrônico] / Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Imunizações e Doenças Transmissíveis. – 4. ed. – Brasília : Ministério da Saúde, 2020.
No século passado, o estudo das grandes epidemias de doenças infecciosas levou a profundas mudanças na compreensão da expressão coletiva das doenças e de suas determinações. nas gerações do pós-guerra, cerca de um século depois, encontramos a aplicação dessa nova ciência ao estudo de uma nova epidemia, um dos mais graves problemas de saúde pública de nosso tempo: as reações adversas aos medicamentos e vacinas. a contribuição da epidemiologia ao estudo do uso dos medicamentos nas sociedades contemporâneas, seus determinantes e suas consequências é, pois, recente, mas bastante rica.
O avanço da farmacologia clínica e do conhecimento sobre os efeitos dos medicamentos (entre estes, as vacinas) no homem permitiu-nos compreender mais claramente a distinção entre os objetivos procurados – os efeitos terapêuticos – e os efeitos indesejáveis, porém inerentes ao uso de drogas. por outro lado, o estudo da utilização dessa nova tecnologia de saúde, o medicamento científico alopático moderno, ultrapassou as observações de suas consequências nos indivíduos e buscou esclarecer regularidades que se expressam nos grupos populacionais. Isso exigiu a confluência dos conhecimentos da farmacologia clínica e da epidemiologia, pois conhecer o consumo dos fármacos, seus determinantes e suas consequências nas sociedades modernas se fizeram imperativo.
A farmacoepidemiologia é uma disciplina-ponte entre a farmacologia clínica, a terapêutica, a epidemiologia e a estatística. o objetivo dessa nova área de estudo é caracterizar, controlar e predizer os usos e efeitos dos tratamentos farmacológicos. a farmacoepidemiologia estuda os medicamentos sob três abordagens: 1) farmacovigilância, que providencia informações sobre os efeitos não esperados e adversos do medicamento; 2) estudo de utilização de medicamentos, que desenvolve uma metodologia própria para conhecer como os profissionais e a sociedade em geral utilizam os medicamentos;3) farmacoeconomia, que se ocupa com o impacto econômico e os benefícios à saúde produzidos pelos fármacos. Daí a necessidade de criar, no país, um sistema de farmacovigilância, bem como programas formais de ensino em farmacoepidemiologia, destinados a qualificar profissionais para produzir conhecimento e viabilizar sua aplicação no interesse da sociedade. portanto, a farmacoepidemiologia é uma nova disciplina, que detém uma metodologia própria e adequada para detectar os efeitos benéficos e adversos dos fármacos, o que a torna extremamente importante para o uso racional de medicamentos e, consequentemente, para a saúde pública, principalmente nos países em desenvolvimento.
A utilidade da aplicação da epidemiologia ao uso dos medicamentos e vacinas pode ser pensada em dois momentos distintos: nos períodos pré e pós-comercialização de uma nova droga. o período prévio à comercialização caracteriza-se pela investigação experimental, ou seja, os ensaios clínicos, última fase dos testes de uma droga, durante a qual se buscam conhecimentos sobre a sua eficácia e uma avaliação da sua margem de segurança. no período posterior à comercialização, encontramos a aplicação, não necessariamente exclusiva, mas preponderante da investigação observacional, com o objetivo de suprir as limitações metodológicas dos ensaios em grupos relativamente pequenos.
O desenvolvimento das vacinas, em especial, mostrou-se uma das mais bem-sucedidas e rentáveis medidas de saúde pública, no sentido de prevenir doenças e salvar vidas. Desde a última metade do século 20, doenças que antes eram muito comuns tornaram-se raras no mundo desenvolvido, devido principalmente à imunização generalizada. centenas de milhões de vidas foram salvas e bilhões de dólares poupados em saúde pública.
Entretanto, o impacto do uso de vacinas em uma sociedade tem várias facetas. Se, por um lado, elas podem aumentar a expectativa de vida, erradicar doenças e trazer benefícios sociais e econômicos – estudos apontam que, desde o século 18, a expectativa de vida do ser humano quase dobrou, passando de 33 anos para mais de 76,3 anos atualmente (BraSI l, IBge, 2018); por outro, elas podem aumentar os custos da atenção à saúde quando utilizadas inadequadamente e/ou levar à ocorrência de eventos adversos indesejáveis no decorrer do tratamento (pfaffenbach et al., 2002).
Ressalta-se que, embora nenhuma vacina esteja totalmente livre de provocar eventos adversos, os riscos de complicações graves causadas pelas vacinas são muito menores do que os das doenças contra as quais elas conferem proteção. É preciso, ainda, grande cuidado ao contraindicar as vacinações em virtude da possibilidade da ocorrência de eventos adversos, pois as pessoas não imunizadas estão sujeitas a adoecer e, além disso, representam um risco para a comunidade, pois poderão ser um elo na cadeia de transmissão.
Como descrito no relatório da aliança Mundial para a Segurança do paciente (oMS, 2005), entre os principais requisitos dos programas para melhorar a segurança dos pacientes estão a habilidade e a capacidade de reunir as informações mais completas sobre eventos adversos e erros de medicação ou imunização, de modo que tais programas sirvam como fonte de conhecimento e base para futuras ações preventivas. Quando não se tomam medidas apropriadas ante a ocorrência de um evento adverso ou quando surgem novas provas a seu respeito, geralmente a lição não será aprendida, a oportunidade de disseminar conhecimento será perdida e a capacidade de produzir soluções mais amplamente efetivas e aplicáveis não se manifestará.
Desse fato, surgem dois eixos fundamentais de ação: a formação adequada em farmacologia clínica e terapêutica em todos os níveis, para garantir a melhor utilização dos medicamentos e das vacinas, e o estabelecimento de um sistema de farmacovigilância.
O objetivo da farmacovigilância é a coleta de informações sobre eventos adversos causados pelos medicamentos e pelas vacinas, e sua análise cuidadosa serve para verificar a causalidade em relação ao produto administrado, com posterior divulgação das informações, incluindo incidência e gravidade das reações observadas. Seu exercício cumpre um papel ético e legal na supervisão da fase de comercialização e do uso em larga escala do referido produto. Isso envolve o monitoramento da ocorrência de eventos adversos, incluindo os sintomas indesejáveis, as alterações em resultados de exames laboratoriais ou clínicos, a falta de eficácia (ausência de resposta terapêutica na dosagem indicada em bula), anormalidades na gravidez, no feto ou recém-nascido, interações medicamentosas e outros eventos inesperados.
A farmacovigilância efetiva compreende, portanto, um conjunto de regras, procedimentos operacionais e práticas estabelecidas que devem ser cumpridas a fim de assegurar a qualidade e a integridade dos dados produzidos em determinados tipos de pesquisas ou estudos. Fundamenta-se na aquisição de dados completos a partir dos relatórios espontâneos de eventos adversos, ou seja, na notificação e na investigação de casos.
Assim, essa nova ciência depende da contribuição de muitas pessoas com formações diversas para a obtenção de um sistema coerente e eficiente. pressupõe o desenvolvimento de diretrizes e procedimentos operacionais padrão que descrevam os detalhes práticos do fluxo de informação de relevância, tais como: o que constitui um evento adverso notificável; quem deve notificar uma observação de suspeita de evento adverso; quais os procedimentos para envio ou compilação de relatórios; as boas práticas de comunicação; os indicadores a serem usados para medir a evolução do sistema de monitoramento para o cumprimento das boas práticas de farmacovigilância; a proteção à confidencialidade dos registros que possam identificar as pessoas envolvidas, respeitando a privacidade delas e as normas de confidencialidade; entre outros.
Em anos recentes, multiplicaram-se as iniciativas para a investigação dos eventos adversospós-vacinação com base em evidências científicas. um grupo internacional de especialistas (Brighton collaboration group) publicou uma série de artigos com o objetivo de padronizar as definições desses eventos, orientando a coleta, a notificação e a investigação de dados, os quais podem ser acessados no endereço: https://vaccine-safety-training.org/brighton-collaboration.html
O council for International organizations of Medical Sciences (cIoMS), um organismo ligado à oMS, criou um grupo de farmacovigilância em vacinas, que revisou e referendou as definições do Brighton collaboration, tomando a iniciativa de simplificar e traduzir as definições consideradas prioritárias para várias línguas, inclusive o português (WHo, 2012).
A OMS também coordena o projeto Blueprint, com a finalidade de criar um mecanismo internacional de investigação e comunicação dos eventos adversos pós-vacinação. no Brasil, nos últimos anos, a anvisa comprometeu-se mais profundamente com a investigação dos eapV, em parceria com o pnI e com o IncQS.
O Brasil tem sido pioneiro na investigação de eventos adversos pós-vacinação e o programa nacional de Imunizações vem realizando um trabalho intenso no sentido de investigar e elucidar todos os casos suspeitos de eventos adversos, oferecendo esclarecimentos à população e, dessa forma, mantendo a credibilidade do programa
A revisão deste Manual, agora em sua 4ª edição, representa mais um esforço para sistematizar a investigação dos eventos adversos pós-vacinação, dentro das possibilidades atuais, em uma área cujo conhecimento está em evolução e que ainda enfrenta muitos desafios. longe de ser completo e isento de dúvidas, este Manual poderá ser complementado com documentos técnicos sempre que necessário. não obstante, espera-se que as informações aqui contidas sejam disseminadas por todos os serviços de imunizações no país, a fim de aprimorar o reconhecimento e o manejo dos eapV, ampliando a segurança em saúde da população brasileira
Disponível Em: <https://www.gov.br/>