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Principais Questões sobre Estruturação dos Serviços de Atendimento às Mulheres Vítimas de Violência Sexual

20 dez 2019

Sistematizamos as principais questões abordadas durante Encontro com a Especialista Dr.ª Zélia Campos, Médica Ginecologista e Obstetra, Coordenadora do Serviço de Atendimento à Vítima de Violência Sexual da Maternidade Municipal Dr. Moura Tapajóz, Manaus/AM, realizado em 02/05/2018.

Veja também: Postagem sobre o tema

 

A Lei nº 12.845 de 1 de agosto de 2013, em seu artigo 1º, diz que:

“Os hospitais devem oferecer às vítimas de violência sexual atendimento emergencial, integral e multidisciplinar, visando ao controle e ao tratamento dos agravos físicos e psíquicos decorrentes de violência sexual, e encaminhamento, se for o caso, à serviços de assistência social”.

A violência sexual atingiu níveis epidêmicos, sendo comparada à doenças infecto-contagiosas. Segundo o Atlas da Violência (2018), foram mais de 49 mil boletins de ocorrência referentes à estupros no ano de 2016. Ainda assim, sabe-se que este é um dado subnotificado.

Para se pensar na organização do serviço é necessário pensar em todos os aspectos, desde os registros das notificações até a equipe do hospital que vai atender as vítimas. A violência é um problema complexo e, exatamente por isso,  é necessário contar com equipes multidisciplinares. 

É fundamental definir a equipe de profissionais que irá atender estes casos, treiná-la e chamar também a Rede para participar: os CRAS (Centro de Referência de Assistência Social), CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social), delegacias, policlínicas com serviço ambulatorial de psicologia, Estratégia Saúde da Família (ESF), agentes de saúde que estão todos os dias em contato com usuários em seus domicílios etc.

Deve-se organizar os treinamentos dos profissionais da Rede juntos, bem como priorizar a construção conjunta de protocolos e fluxos (internos e externos aos serviços), sobre os locais de referência onde as usuárias devem ser encaminhadas. Quando os serviços não são treinados juntos, em Rede, há maior risco de revitimização.

São diversas as consequências da violência sexual, sendo estas emocionais e físicas. As vítimas precisam ser levadas a sério pelos profissionais de saúde pois as sequelas da violência podem causar danos à longo prazo.

Mesmo que a instituição careça de recursos tecnológicos e financeiros adequados para a assistência, ainda pode-se contar com ações de humanização no cuidado às vítimas. Os treinamentos devem ser voltados para as habilidades. Não basta que o profissional seja educado e atencioso, existem técnicas a serem desenvolvidas para prestar o cuidado. E nem todos os profissionais tem perfil para realizar este tipo de atendimento, por isso é importante identificá-los.

As primeiras 72 horas são fundamentais para o atendimento. Quanto mais precoce a vítima chegar no serviço de saúde, mais rapidamente ela será acolhida e cuidada. 

Nas mulheres que já passaram pela menarca, existe o risco de gravidez. A contracepção de emergência deve ser ofertada, bem como os anti retrovirais, pelo risco de contaminação pelo HIV. É necessário também verificar a vacinação contra hepatite B (providenciar a vacina ou imunoglobulina, se for o caso), além de considerar a prevalência de infecções bacterianas como gonorréia e clamídia, que podem trazer consequências pro resto da vida (por ex: Doença Inflamatório Pélvica com obstrução das tubas uterinas e consequentemente infertilidade. 

É importante ofertar estes medicamentos forma a garantir que a paciente se sinta segura. Por exemplo, o tratamento completo com os anti retrovirais dura 28 dias. Para isso, a equipe tem que se estruturar para entrar em contato com a paciente toda semana (até completar os 28 dias). A violência sexual causa traumas no sistema nervoso central que levam à alterações cognitivas e sintomas como esquecimento. A confecção de kits com a dose diária da medicação que deve ser administrada, é uma estratégia para a segurança da paciente. Duas semanas após o primeiro atendimento a paciente deve retornar ao serviço. Se a paciente não retornar a equipe deve fazer a busca ativa.       

O tratamento psicológico é importantíssimo em qualquer situação, seja nos casos agudos ou nos casos crônicos de violência sexual. 

Nos casos de atendimento às crianças e adolescentes vítimas de violência, as características são de violência crônica, de repetição, pelo mesmo agressor. Nestes casos, diferente da assistência aos casos agudos de violência, não deve-se utilizar os medicamentos, preconizando a realização de exames para avaliar se há alguma doença já instalada. 

 

Abaixo a gravação do Encontro na íntegra.

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Perguntas & Respostas

1. Quais são as melhores formas de sensibilizar a equipe multi para a estruturação e qualificação permanente do serviço?

Através dos treinamentos, das oficinas, das aulas e das aulas práticas também. 

Quando saímos da sala de aula tradicional e dos treinamentos e vamos para aula prática, os profissionais ficam muito sensibilizados. Dificilmente aquilo não causa um impacto positivo, no sentido de fazerem algo para mudar seu atendimento.

 

2. Trabalho na Atenção Básica de um município pequeno, no interior. Já atendemos casos de violência sexual e não estávamos preparados. Como podemos estruturar o serviço para encaminhar com segurança essas pacientes?

O primeiro passo para a implantação de um serviço deve ser a busca por leituras em guias e normas técnicas, como a Norma Técnica de Prevenção e Tratamento dos Agravos Prevalentes Resultantes da Violência Sexual e a Linha de Cuidado para a Atenção Integral à Saúde de Crianças, Adolescentes e suas Famílias em Situação de Violência, ambas do Ministério da Saúde.

Toda equipe deve ler e acessar os Manuais e Normas Técnicas para desenvolver um bom trabalho. Além disso, eles servem para organizar os planos de ação e as oficinas para formação dos profissionais.

A partir das leituras é possível estruturar melhor o serviço, pensar nos treinamentos necessários para preparar os profissionais e também na organização dos medicamentos, pois a maior parte deles está na Atenção Básica (como a penicilina benzatina, ciprofloxacino, azitromicina e os anti retrovirais). 

Quanto ao espaço físico, o ideal é disponibilizar uma sala reservada para o atendimento, que deve ser sigiloso, respeitoso e garantir privacidade. De preferência deve estar preparada para atendimentos de ginecologia e ter um banheiro dentro. Também é melhor que não esteja localizada dentro do pronto atendimento, onde há maior fluxo de pacientes. É importante que a sala não tenha placa de identificação de “atendimento à vítima de violência sexual”, a fim de garantir a privacidade do atendimento. 

Há diversas alterações que acontecem com a paciente que passa por violência sexual e por isso é fundamental escolher profissionais com perfil para atender estes casos. O profissional deve ser formado para não perder a tranquilidade durante o atendimento e ter claro que cada um deve saber seu papel na equipe. O profissional deve saber acolher, acalmar e ajudar a usuária para sair melhor após o atendimento. Deve-se respeitar sua autonomia, não duvidar, não criticar, não questionar. Isso não cabe ao profissional e mostra despreparo.

É importante preparar o passo a passo do atendimento: acolher, fazer a escuta qualificada para coletar uma boa história, avaliar o grau de risco da pessoa (riscos sociais, econômicos e outros possíveis riscos), assim como identificar se a violência sexual sofrida é um caso agudo ou um quadro crônico. 

 

3. Como proceder se a mulher não quiser fazer Boletim de Ocorrência? O que isso implica para os profissionais?

Algumas vezes a vítima de violência procura o serviço encaminhada pela delegacia. Outras vezes ela não passou pela delegacia. Nesses casos os profissionais devem orientá-la a abrir um boletim de ocorrência. 

A vítima normalmente não quer fazer o boletim porque tem medo da exposição ou de ser mal recebida na delegacia. Por isso é importante chamar as delegacias para participarem dos treinamentos junto com os profissionais de saúde.

É necessário explicar para a vítima que ela tem direito ao boletim de ocorrência, que esta é uma questão de cidadania. Se for preciso, alguém do serviço de saúde deve acompanhar a vítima até a delegacia para fazer o boletim ou o serviço entra em contato com a delegacia antes de encaminhar. Isso depende dos fluxos estabelecidos entre os serviços. O objetivo deve ser cuidar da vítima e não revitimizar. 

Quanto aos profissionais, no caso da mulher adulta, não há implicações legais caso a vítima não realize o boletim de ocorrência.

Dentro das primeiras 72 horas após a violência sexual é possível fazer a coleta de vestígios no serviços de saúde ou no Instituto Médico Legal (IML). O IML só coleta vestígios o boletim de ocorrência for feito. É importante que a equipe explique para a vítima, de uma forma muito tranquila, a importância do boletim de ocorrência e o direito que ela tem em fazê-lo. Cabe também aos serviços buscar mecanismo para que a Rede melhore.

 

4. Meu serviço não tem ginecologista 24h para atendimento aos casos de violência sexual. Como podemos proceder?

Mesmo que o serviço não tenha ginecologista 24 horas, é importante ter o atendimento às vítimas de violência. 

As lacerações decorrentes de violência sexual em mulheres adultas ocorrem em torno de 1% a 2% dos casos. Em crianças este número é maior. Caso chegue alguma vítima com este quadro, por tratar-se de um caso de urgência, os plantonistas devem atender ou encaminhar para um pronto atendimento com ginecologia, se possível, para fazer a sutura.

Caso não tenha laceração e não haja necessidade de sutura, a palavra da vítima de que houve penetração é suficiente para realizar o atendimento. Nestes casos ela deve receber todos os medicamentos necessários para a profilaxia, bem como o atendimento psicológico. A assistência não depende do ginecologista nestes casos.

É possível organizar protocolos onde o enfermeiro prescreve as medicações para profilaxia, segundo protocolos, além de deixar prescrições e kits prontos (para vítimas grávidas, para crianças e adolescentes, para pessoas adultas etc.), a fim de facilitar o trabalho da equipe.

 

5. Existe uma portaria de 2012 que fala que todo serviço de saúde deve atender vítimas de violência, mas na prática não vemos isso. Gostaria que falasse um pouco sobre estas questões. 

A lei de 2012 torna obrigatório o atendimento às vítimas de violência sexual em todos os hospitais, porém isso ainda não é garantido na prática. Esta ainda é uma luta que precisamos avançar no país.

 

6. No caso de usuárias com histórico repetido de violência sexual, o que podem fazer os profissionais?

A situação da violência sexual é complexa e dependendo de algumas particularidades elas se tornam ainda mais complexas. Os profissionais de saúde podem se aproximar e questionar outros setores, como as delegacias por exemplo. Questionar o setor jurídico e também a defensoria pública pode ajudar, já que algumas vezes o agressor está dentro de casa.  

Alguns casos não dependem só do tratamento da vítima e exigem participação do setor policial e jurídico. Por isso é tão importante o trabalho em Rede, a participação de profissionais de saúde nas audiências públicas, apontando a ocorrência destes casos.

Deve-se levar em conta também os casos de repetição de violência sexual relacionados às pessoas em situação de vulnerabilidade, como usuárias de drogas, pessoas com problemas de saúde mental, etc. Para tentar apoiá-los deve-se chamar a equipe multidisciplinar e interdisciplinar para discutir o caso, conversar sobre a Rede para chegar à melhor solução para o usuário. O atendimento deve ajudar a cortar o ciclo da violência, e para que isso ocorra, a rede precisa funcionar.

 

7. Hoje qual seria o maior desafio em relação à estruturação de equipes multiprofissionais para os atendimentos?

O maior desafio é encontrar pessoas com perfil para o atendimento às vítimas de violência. Alguns profissionais, mesmo com treinamento, após um período já não querem mais trabalhar no serviço. Vale lembrar que os profissionais sempre devem ter acompanhamento psicológico. 

Outra questão importante é o apoio do gestor para que o serviço exista. Se não houver um verdadeiro interesse por parte do gestor, fica muito difícil essa organização. 

 

8. Que materiais/insumos são necessários para iniciar o atendimento às vítimas de violência?

Em termos de estrutura física o ideal é uma sala preparada para atendimentos de ginecologia, para que se possa fazer a avaliação ginecológica. Deve ter escrivaninha, se possível computador e impressora, ou o prontuário já impresso sobre a mesa. Pode-se organizar prontuários específico para esse tipo de atendimento, baseado na própria norma técnica da coleta de vestígios do Ministério da Saúde. No documento encontra-se a ficha atualizada que pode ser adaptada de acordo com a realidade do serviço.

É importante que a sala não esteja identificada com o nome de “serviço de atendimento à vítima de violência sexual”, podendo estar identificada somente como “acolhimento”, por exemplo.

 

9. Como uma mulher em situação de violência que chega no hospital é acolhida e classificada? Para onde ela vai? Como a equipe é acionada?

A paciente chega na recepção e se identifica. A partir daí o hospital faz o registro e a encaminha para a sala de atendimento, que costuma ser feito pelo psicólogo ou enfermeiro da Instituição. Ela é acolhida de forma respeitosa, faz-se a escuta  qualificada e o registro de seu relato. Os profissionais devem estar a par das informações que devem estar contidas no prontuário. Então o caso é classificado entre agudo ou crônico para que se possa dar seguimento ao atendimento.

Os atendimentos não passam pela classificação de risco de urgência, porque entende-se que o atendimento da vítima de violência sexual sempre é de urgência e a paciente não deve ficar esperando. Algumas vezes este é o único momento que a vítima vai procurar ajuda. Se os profissionais perderem aquela oportunidade, corre-se o risco da paciente não voltar ao serviço.

 

10. Quando o serviço está pronto para atender?

O serviço está pronto para atender quando os profissionais entendem que devem acolher as vítimas de violência sexual. O restante é consequência desta compreensão: os profissionais vão procurar os medicamentos que devem estar disponíveis, vão reunir os documentos necessários, organizar os prontuários e as prescrições. O treinamento deve ser contínuo. As equipes que trabalham no atendimento à violência devem procurar se unir e capacitar. 

 

11. Os residentes de ginecologia e obstetrícia devem participar deste serviço? O atendimento à violência sexual faz parte da formação acadêmica de alunos de medicina, enfermagem e outras áreas da saúde?

Os resistentes devem participar dos atendimentos às vítimas de violência sim, sejam eles da medicina, enfermagem, assistência social ou psicologia. Isso contribui muito com a assistência prestada.

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