Sistematizamos as principais questões sobre Aborto Legal enviadas pelos usuários do Portal durante Encontro com o Especialista Cristião Fernando Rosas, Médico Ginecologista e Obstetra, realizado em 24/01/2019.
Veja também: Postagem sobre o tema
O Aborto legal é um tema complexo, que causa muita dificuldade de acesso e dúvida nas mulheres, particularmente nas mulheres mais pobres, mais excluídas da sociedade e que tem menos informações.
O próprio nome diz: aborto legal, ou seja, interrupção da gravidez nos casos previstos em lei. O aborto legal tem um componente técnico, baseado em protocolos médicos, protocolos assistenciais, de enfermagem, de assistência social, de psicologia etc. E um outro componente, não menos importante, em razão da característica deste procedimento, que é a legislação, componente ético-legal.
O Código Penal Brasileiro, de 1940, estabelece os permissivos legais para a interrupção da gravidez nos casos previstos em lei. O aborto é crime pela legislação brasileira desde 1940, portanto há quase 80 anos. Em dois incisos no artigo 128, a legislação não pune o médico que realiza o aborto: para salvar a vida da mulher e para o caso de uma gestação decorrente de estupro, por solicitação e consentimento da mulher. Se a mulher for menor de idade, deficiente mental ou incapaz, por autorização de seu representante legal.
Mais recentemente, o Superior Tribunal Federal, em 2012, decidiu por ampliar essa permissividade também nos casos de anencefalia, através de uma ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), a nº 147.
O que precisa ser dito é que o Brasil está entre os 25% das nações do mundo com legislações mais restritivas em relação à interrupção da gravidez. E isso traz consequências para os indicadores de saúde materna, como o aborto inseguro e para a morbimortalidade materna.
Gestação Decorrente de Violência Sexual
Primeiro é preciso entender que mais da metade dos estupros ocorre durante a vida reprodutiva das mulheres. Boa parte delas são meninas e adolescentes. A estimativa de gestação em uma mulher vítima de estupro é ao redor de 5%.
Muita coisa foi legislada, normatizada e regulamentada no Brasil. Vamos nomear apenas algumas delas.
Todo este arcabouço legal e estes protocolos estabelecidos por estas normas esclarecem as condições a serem observadas pelos profissionais de saúde para realizar a interrupção da gestação, como quais os documentos necessários e quais as técnicas recomendadas nas melhores evidências.
É importante a constituição de uma equipe multiprofissional para prestar assistência à essas mulheres e que seja previamente sensibilizada e capacitada para uma atenção empática baseada no respeito à dignidade da mulher, na credibilidade de sua fala, expondo todas as alternativas possíveis para aquela assistência. A mulher deve ser informada de que tem o direito a fazer a interrupção da gravidez, mas é preciso esclarecê-la que ela pode continuar com a gravidez. Se for esta a vontade da mulher, a equipe deve oferecer os cuidados de pré-natal de alto risco nesta gestação e ou então os procedimentos, serão adotados para a doação do feto ao final da maternidade. É importante que a Equipe multiprofissional mantenha uma postura neutra, sem julgamentos de valor ou imposições. A decisão deve ser da mulher após esclarecimento informado.
O código penal, em nenhuma destas situações, em nenhuma destas portarias e leis, estabelece como obrigatoriedade, que a mulher deva fazer a denúncia, realizar o boletim de ocorrência e noticiar o fato à polícia. Um crime hediondo foi cometido, portanto deve-se dar todo o apoio e acolhimento necessário caso isto seja da vontade da mulher, para que ela possa fazer sua denúncia com toda segurança.
A equipe de serviço social deve acompanhar a vítima até a delegacia da mulher, para que, com o acolhimento necessário, ela faça o boletim de ocorrência e os processos de investigação policial ocorram para identificar o agressor. Caso a mulher não queira fazer a denúncia e o boletim de ocorrência, mantêm-se o direito da mulher de acesso à interrupção da gravidez, isto é, a interrupção não pode ser cerceada. A mulher tem até 6 meses para formular a denúncia nos casos de estupro.
Toda fala da mulher deve ser dada como de credibilidade ética e legal e recebida com presunção de veracidade. Os procedimentos da saúde são para diminuir danos, trazer aspectos benéficos na assistência, tratar e dar acesso ao procedimento do aborto legal e não deve ser confundido com os procedimentos reservados à investigação policial ou judicial.
Importante lembrar que, o código penal, artigo 20, inciso 1º, diz que é isento de pena quem por erro plenamente justificado pelas circunstâncias no momento do atendimento, supondo que a situação de fato existisse, tornaria a ação legítima. Não se pode portanto posteriormente incorrer processo criminal se for porventura for identificada uma inverdade, uma falsa alegação na fala da mulher. Isso significa que a equipe está isenta de pena.
A mulher mentir ao solicitar um aborto legal é um dos mitos que ocorrem em relação à violência sexual. Uma mulher que se submete à todo um processo de atendimento multidisciplinar, em equipe com psicólogo, assistente social, enfermeiro, médico, muitas vezes farmacêutico, anestesista, passa pela assinatura de processos bastante rigorosos. É muito difícil que isso ocorra. E nos casos de violência sexual, para interromper a gestação, não é necessário nem B.O., nem exame de corpo de delito e nem autorização judicial. O fundamental é o consentimento informado da mulher.
A Portaria 1.508/GB/MS de 2005 dispõe sobre os procedimentos de justificação e autorização da interrupção legal da gravidez no SUS. Essa portaria estabelece detalhadamente os passos para os profissionais de saúde e ampara a mulher na garantia de acesso à esse direito.
Como medidas asseguradoras da licitude do procedimento da interrupção, são cinco termos e passos a serem seguidos. Estes cinco documentos são anexos da portaria 1.508 e podem ser obtidos e impressos para serem utilizados pelos hospitais. Pode-se colocar a logotipo da Instituição. Estes documentos devem estar anexados ao prontuário e ter sua confidencialidade garantida.
Aborto Terapêutico – Quando Há Risco de Morte Materna
Aconselha-se uma avaliação de no mínimo dois profissionais: um médico obstetra e um clínico. Idealmente solicita-se a avaliação de um terceiro médico, um especialista da patologia da qual se solicita o risco que motiva a interrupção.
Nesses casos, é preciso ter clareza que a interrupção é a melhor maneira de preservar a vida da mulher. É o caso, por exemplo, da hipertensão pulmonar que chega a ter 70% de risco de morte materna durante a gestação. Ou casos de cardiopatia funcional grau IV, doença renal grave, doenças do colágeno, etc. Casos de patologias que sabidamente há grandes riscos de complicações gravíssimas e são causas frequentes de morte materna em nosso país.
O aborto terapêutico no Brasil costuma ser feito muito tardiamente, em situações extremas. Não é pra menos que um número importante das mortes maternas no Brasil são de causas indiretas, de patologias de base que se complicam durante a gestação.
É importante a equipe ter o apoio de um profissional da psicologia, pois estão diante de uma gestação desejada. O acompanhamento psicológico desta mulher é fundamental. A autorização e o consentimento dela também, a não ser em situação “em extremis” em que a vontade da mulher não possa ser dada.
Há casos especiais, como coma e choque e outras situações individualizadas que devem ser discutidas pela equipe. Nesses casos a decisão da equipe vai prevalecer. Também não é necessária autorização judicial.
Gestação de Feto Anencéfalo
Desde 2012 o aborto de fetos anencéfalos passou a ser legal no Brasil.
A Resolução nº 1989/2012,16 do Conselho Federal de Medicina “dispõe sobre o diagnóstico de anencefalia para a antecipação terapêutica do parto e dá outras providências. Esta resolução estabelece todos os passos que devem ser seguidos para a interrupção da gravidez nos casos de anencefalia. Informação clara e precisa sobre os riscos que a mulher sofre com o evoluir da gravidez diante de uma gestação de anencéfalo: 50% dos casos terão polidramnios graves, partos traumáticos e distócicos, devido à posições anômalas durante o parto com possibilidade de morte materna, explosão do líquido amniótico com descolamento prematuro de placenta, hemorragias maternas, 4% dos casos terminam em histerectomia, 5% precisam de transfusão sanguínea no momento do parto. Isso mostra a gravidade das características do parto de um feto anencéfalo a termo.
A mulher, com o consentimento informado, avaliação da psicologia, enfermagem e serviço social, consente ou não a interrupção da gestação. A decisão deve ser da mulher, sem juízo de valor, sem imposição de nenhuma atitude que possa direcionar sua decisão. Importante é mostrar que a inviabilidade do feto já está estabelecida na situação de anencefalia.
Nestes casos, o ultrassom precisa ser assinado por dois profissionais que tenham competência para este laudo. Além disso, é necessário duas fotos de ultrassom: uma de face sagital e outra na situação transversal, mostrando a patologia. Isso deve também ficar arquivado no prontuário da mulher, assim como o consentimento informado, o laudo técnico da equipe multiprofissional. Também é muito importante o laudo psicológico da plena capacidade de decisão da mulher em tomar esta decisão.
Quanto à técnica utilizada, deve-se prevalecer a vontade da mulher, se cirúrgica ou medicamentosa. Cada vez mais as técnicas medicamentosas tem ganho realce, em razão do seu baixo custo, alta efetividade, poucas taxas de complicações e eficácia quase igual ao procedimento cirúrgico. Após o procedimento, o retorno da mulher se faz aos sete dias (como uma revisão puerperal) e 45 dias após o procedimento.
Abaixo a gravação do Encontro na íntegra.
O Encontro com o Especialista é uma webconferência realizada quinzenalmente com especialistas de diversas áreas. Para participar é necessário se inscrever no evento, assim você poderá enviar dúvidas que serão respondidas ao vivo!
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Perguntas & Respostas
1. Só a opinião a favor do aborto tem embasamento? Qual o número de mortes por aborto no Brasil por ano?
Ser a favor ou não do aborto é um falso dilema ético. Ninguém é a favor do aborto, nem mesmo a mulher que vai fazer uma interrupção ilegal ou mesmo legal vai fazê-lo alegre ou feliz por que é a favor do aborto. Existe na sociedade alguns que acreditam que criminalizar diminui a ocorrência de abortos inseguros, ilegais ou solicitações de abortos. Outro grupo da sociedade já percebeu que a lei não diminui o número de abortos, não salva os fetos que a lei pretende salvar criminalizando o aborto, pelo contrário. Isso traz morbimortalidade para as mulheres.
Em relação ao número correto de mortes por aborto no Brasil, os melhores dados são do Ministério da Saúde. A nota técnica oficial que o Ministério da Saúde entregou ao Supremo Tribunal Federal falando sobre a questão do aborto inseguro coloca que no ano de 2015, 503 mil mulheres interromperam voluntariamente a gestação. As complicações e mortes foram um custo importantes para o sistema: 1.6 milhão de hospitalizações por interrupções voluntárias de gestações em dez anos no SUS (entre 2008 e 2017), sendo que 15 mil dessas complicações foram muito graves, 5 mil foram quase a óbito o que causou 203 mortes maternas por aborto inseguro no ano de 2006. Isso corresponde à uma morte a cada dois dias. Esses números são muito impressionantes quando sabemos que são mortes evitáveis.
Há um estudo cronológico de morte materna publicado no American Journal of Public Health, um dos maiores periódicos de mortalidade materna do mundo. Ele mostra que o aborto legal e seguro é o procedimento reprodutivo mais seguro que existe. O risco de morte por aborto seguro, para cada cem mil procedimentos, é de 0,5. Para se ter uma comparação o risco por aborto espontâneo é de 1,19, parto com feto vivo 7, gestação ectópica 31 e o parto com morte fetal 97 para cem mil procedimentos.
A grande questão ética colocada é que as mulheres pobres com menos de quatro anos de estudos morrem. As mulheres negras tem um risco de morte por aborto três vezes maior do que as mulheres brancas. Essa é uma questão de justiça e equidade social.
2. Como acredita que deve ser a abordagem sobre o aborto legal nos cursos de graduação da área da saúde?
Essa pergunta é muito importante e deveria requerer dos gestores da academia, das universidades e particularmente das faculdades do sistema de saúde muita atenção e principalmente que se pensasse em uma mudança curricular com a inclusão dessa temática nos cursos.
3. Os dados de publicação recente do The Lancet sobre acesso ao aborto seguro no âmbito global e os dados The Guttmacher report, de 2018 evidenciam que abortos inseguros são a causa de 8 a 11% da mortalidade materna em países de baixo e médio rendimento. Uma porcentagem alarmante se pensarmos que essas mortes seriam completamente evitáveis. O Guttmacher report ressalta que desde 2009, ou seja, há dez anos, observa-se em países com políticas mais liberais de acesso ao aborto, uma transição dos abortos cirúrgicos para os abortos com usos da Mifepristone e Misoprostol. Gostaria que o senhor comentasse, quais seriam na sua opinião os métodos mais custo efetivos para o abortamento seguro e acessível no âmbito do Sistema Único de Saúde.
Todas as grandes publicações mundiais colocam o impacto da ocorrência do aborto inseguro para a saúde e para a vida das mulheres. A Organização Mundial de Saúde e a FIGO (Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia), em publicações não tão recentes, já recomendam em seus guidelines para gestores e provedores de saúde a substituição do método arcaico, que é o método cirúrgico que temos utilizado para tratar aborto no Brasil.
O aborto cirúrgico (curetagem) deve ser substituído pelas técnicas aspirativas, seja elétrica ou manual, ou ainda substituídas pelas técnicas medicamentosas. Os medicamentos tem sido cada vez mais utilizados no mundo para o aborto. O Mifepristone e a combinação Mifepristone e Misoprostol podem ser utilizados em realidade ambulatorial para tratamentos mais precoce (abaixo de 10 semanas). O Misoprostol isolado tem uma eficácia altíssima até 12 semanas: ao redor de 93% a 95%, não sendo necessária complementação cirúrgica.
O uso de medicamentos para o aborto em substituição à curetagem ou ao método aspirativo causa um impacto estrondoso na redução dos custos hospitalares devido às menores taxas de complicações e cada vez mais tem sido aprovado pelas usuárias em pesquisas.
4. Gostaria que o senhor falasse um pouco sobre os espaços existentes hoje no SUS para o debate sobre aborto. Como esses espaços têm garantido ou incentivado a participação dos usuários no debate?
Há muito poucos espaços no SUS com os usuários para fazer debate.
Temos visto cada vez mais que as sociedades científicas, como recentemente o Ceará que promoveu uma mesa com mulheres para falar sobre saúde reprodutiva incluindo o aborto, na SOGESP (Associação de Ginecologia e Obstetrícia de São Paulo) com adolescentes sobre tema de planejamento familiar e aborto. Houve época em que alguns fóruns eram feitos, mas isso precisa progredir.
Acho importante que esses debates junto com a comunidade se façam de maneira clara, mostrando a gravidade desta situação e o impacto que um aborto inseguro e sem orientação tem para a vida das mulheres.
5. Como deve funcionar o apoio psicológico às mulheres que buscam o aborto legal? Há diferença para os casos decorrentes de abuso sexual ou anencefalia?
O primeiro ponto que é importante na avaliação da equipe de psicologia é avaliar todo o contexto em que vai se dar essa interrupção e o motivo da mesma.
Uma das principais peças que deve constar em um laudo psicológico é a capacidade plena de decisão da mulher. E capacidade plena se adquire com capacidade civil ou condição civil, maioridade, associado à capacidade de decisão ou seja isso decorre de quantidade de informação correta e clara que essa apresenta.
Se a psicóloga entende que a mulher tem capacidade de decisão aí o apoio psicológico é para o medo, a insegurança, o sentimento de culpa e transgressão ética, moral, religiosa, filosófica, já que a grande maioria dessas mulheres que procuram o serviço de interrupção de gravidez tem a sua fé, sua crença e muitas vezes sentem-se transgressoras diante de uma norma religiosa que desde sua vida inteira tem sido ensinada. É muito importante um grande apoio psicológico à estas mulheres.
Apesar de toda ansiedade e angústias após os procedimentos, os estudos mostram que o impacto de uma interrupção da gravidez seletiva na vida psicológica e no bem estar dessas mulheres é a sensação de alívio. Claro que àquelas que tinham uma gestação desejada e em decorrência de um risco materno muito grave, uma situação de anencefalia podem estar tristes. Mas é um luto que com o tempo é perfeitamente superável.
6. Já recebi mulheres vítimas de violência sexual no meu serviço e não sabia para onde encaminhá-la para garantir acesso ao aborto legal. Como posso ter essa informação?
No site do CNES (Cadastro Nacional de Estabelecimento de Saúde), do Ministério da Saúde, está especificado todos os estabelecimentos que se cadastraram para a realização de interrupção da gravidez prevista em lei. Há alguns anos atrás eram 60 e poucos serviços e hoje este número gira ao redor de 31.
Muitos Municípios e Estados, em seu sites, colocam a unidade de acesso. É importante recorrer à gestão de saúde, ao secretário de saúde, para que isso se formalize em consórcio com outro município, se necessário, mas essa informação precisa estar disponível.
7. Todo hospital deve atender vítimas de violência sexual? Mesmo que não tenha maternidade? E o que precisa ter neste atendimento?
Boa parte das mulheres que procuram atendimento às vítimas de violência sexual moram em municípios que não tem maternidade. Mas tem sempre uma unidade de atendimento de urgência, upa, um pequeno pronto-socorro, que deve estar preparado para recebê-la.
A Lei nº12.845 de 2003 diz que é obrigatório todos os estabelecimentos de saúde estarem capacitados e treinados, com seus protocolos afixados, disponíveis para acesso aos profissionais e garantir pelo menos as profilaxias:
Não podemos esquecer que as vítimas requerem orientações quanto ao risco de adquirir HIV. O Ministério da Saúde aponta que nestes casos o risco é de 1,3% de adquirir soroconversão após violência sexual, ou seja uma a uma e meia mulher em cem vai ser contaminada pelo vírus. Portanto ela merece e precisa ter informação clara de que não só o contraceptivo de emergência pode falhar mas também que ela pode adquirir HIV. e ser oferecido o esquema tríplice contra HIV (Tenofovir, Atazanavir e Lamivudina). Estes são comprimidos co-formulados e de simples oferecimento. Lembrar que seu oferecimento pode ser dado até 72 horas após estupro e mantido por 28 dias, ou seja, quatro semanas. É muito importante que a mulher receba essa orientação e é claro que ela receba acompanhamento de uma equipe especializada, com infectologista, que possa continuidade ao acompanhamento das enzimas hepáticas.
Todo hospital precisa pelo menos atender à emergência e estar em fluxo integrado com o segmento ambulatorial, já que a sorologia precisa ser colhida periodicamente:
Muitas vezes surgem corrimentos ou alguma outra ocorrência que podem aparecer e algumas DST que não têm profilaxia, como herpes e condiloma também devem ser monitorados neste período ambulatorial.
Há grande impacto psicológico após violência sexual, por isso a vítima deve ter acompanhamento psicológico durante um período. Existe o fenômeno de stress pós traumático agudo, que ocorre nas semanas iniciais. A mulher pode apresentar insônia, atitudes de desespero, sonolência profunda, depressão e sonhos obsessivos. Após este período ela entra em uma fase intermediária, onde parece que tudo se resolveu. Mas não se resolveu. Os estudos mostram que 18% das mulheres que chegam aos pronto atendimentos com quadro de tentativa de suicídio tem na sua história pregressa abuso sexual e violência sexual. Isso mostra que o abuso impacta na qualidade de vida, na autoestima, na vida sexual da mulher no futuro e por isso ela precisa de acompanhamento psicológico.
Claro que muitas unidades não tem condições de realizar o aborto legal. Mas ainda assim precisam ter um fluxo muito claro estabelecido. Principalmente para atender mulheres que não fizeram a profilaxia e chegam grávidas no serviço de saúde, com dois meses de atraso e a gestação decorrente de violência. Esta mulher tem direito ao acesso à interrupção da gestação e precisa ser acolhida e imediatamente encaminhada em fluxo adequado para um hospital que tenha equipe formada para este atendimento.
8. Se a mulher tem dúvidas em relação à interrupção da gravidez prevista em lei após violência sexual, como deve ser a condução do caso pela equipe?
O papel da equipe é acolher a mulher, ter uma relação empática e dar credibilidade à sua fala, mas nunca impor opinião ou qualquer atitude que direcione a sua decisão sobre a interrupção. A decisão é individual, após aconselhamento. Na verdade aconselhamento não é bem dar um conselho. A palavra aconselhamento vem do inglês, counseling, e significa dar informações de tal maneira, em uma relação tão empática, que faça a mulher refletir sobre a sua condição de saúde, sobre a sua sexualidade, sobre tudo que está acontecendo. Assim ela pode tomar uma decisão, mesmo que difícil, mas com a maior convicção possível. Se após o atendimento a mulher tiver dúvidas, a equipe evidentemente deve falar solicitar que a mulher retorne quando tiver uma decisão completa.
Lembrando que no caso da violência sexual a interrupção da gestação, na norma técnica do Ministério da Saúde, vai até 20 ou 22 semanas ou se o feto pesar até 500 gramas. No caso da anencefalia não há limite de idade gestacional, evidentemente, já que o diagnóstico é muitas vezes tardio. No caso de risco de vida materna, qualquer momento pode impor a decisão de interrupção terapêutica da gestação.
9. Muitos hospitais e maternidades são geridos por organizações religiosas e muitas delas impõem uma mordaça aos profissionais de saúde em relação à anticoncepção e interrupção da gestação. Independentemente do caso, eles não podem falar sobre o assunto quanto mais agir. Como os profissionais de saúde destas instituições podem ou devem proceder? Como garantir que o direito das mulheres seja resguardado?
Cada vez mais temos visto a administração, terceirização do serviço público para organizações sociais e algumas delas com vínculo com organizações religiosas.
Existe muita confusão sobre a questão de objeção de consciência. A objeção de consciência é um direito dos profissionais e está garantido no Código de Ética Médico. É uma garantia, através dos instrumentos políticos e civis da ONU: direito de consciência, religiosidade e expressão da sua vontade. Esse mesmo pacto de direito civis e políticos que garante o amplo direito de liberdade de expressão da consciência e religiosidade diz que a expressão de religiosidade não pode se impor aos direitos de terceiros quando estes terceiros não tem a mesma observação ou visão de mundo que aquele que se diz objetor.
A FIGO (Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia) definiu que a objeção de consciência não pode estar adiante do direito de informação e acesso da mulher à este procedimento. Os profissionais não podem confundir objeção de consciência com omissão de socorro. Muitas vezes a mulher solicita a interrupção legal da gestação e os profissionais respondem que aquela instituição não realiza o procedimento e que são todos objetores, deixando a paciente sozinha para buscar atendimento. Isso força a mulher a buscar um aborto inseguro, com as graves consequências que já sabemos.
Do ponto de vista ético o objetor deve informar à mulher quais os seus direitos e deve também encaminhá-la, de maneira ágil e segura através de um telefonema se possível, para o fluxo pré-estabelecido.
Não existe objeção de consciência coletiva, institucional. Mesmo organizações religiosas precisam dar informação para a mulher, acesso e garantia ao procedimento. O gestor tem responsabilidade e ele precisa dispor de uma equipe treinada e não objetora para que ocorra a garantia do direito constitucional, civil e legal.
10. Não existe aborto legal no Brasil, mas exceções onde o crime do aborto não é punido no nosso país. Porque foi usado esse termo tecnicamente incorreto?
A lei que criminaliza o aborto vem do código penal de 1940 e desde então não foi modificada. Isso já faz quase 80 anos. A lei na verdade não pune o médico, então o legislador em 1940 percebeu que na situação de um risco de vida para a mulher o aborto deveria ser um direito e por isso não ser feito clandestinamente. Quando o legislador em 1940 colocou que não se pune o médico, ele já pensou em um procedimento com ambiência hospitalar adequada, com higiene, assepsia, com mãos treinadas, habilitadas e capacitadas.
Esse é um tema que precisa ser melhor discutido no Brasil. Infelizmente ou felizmente o caminho tem sido através do Supremo Tribunal Federal, que deve decidir essa questão, porque se pauta em direitos humanos, direito à equidade, direito à saúde, direito à vida, direito à autonomia, à individualidade, à privacidade. São direitos humanos que são peças pétreas, cláusulas da nossa constituição.
Vale lembrar que tivemos um descriminante, um permissivo, que foi o caso da anencefalia mais recentemente em 2002.
11. Como proceder nos casos de menores de idade que tenham sofrido abuso sexual e tenham direito ao aborto legal? Ela precisa estar acompanhada por um responsável legal para ter acesso a esse direito? Como a equipe deve proceder?
Menor de 18 anos precisa ter o seu responsável legal ou seu tutor. Ela não decide sozinha e a lei o código civil é bem clara: acima dos 18 anos a mulher decide por si mesma; entre os 16 e 18 anos os pais a acompanham, respeitando a sua decisão; abaixo dos 16 anos os pais a representam. Nestes casos, os pais assinam pela menor a autorização pela interrupção da gravidez.
Diante da legislação, do código penal brasileiro, abaixo dos 14 anos, mesmo que a relação sexual seja consentida, é considerada estupro de vulnerável. Pode ocorrer uma situação em que a menina menor de 16 anos não quer fazer a interrupção da gravidez e os pais querem. Nestes casos, onde há contradição entre a opinião da menor e dos pais, deve-se solicitar intermediação do judiciário, através da promotoria da infância e juventude ou a defensoria pública. Encaminha-se então a decisão ao juiz da infância. Não recomenda-se fazer um procedimento contra a vontade de uma menor. Esta seria uma agressão ainda mais violenta.
12. Quais outras opções, fora o aborto, são dadas às mulheres que engravidaram por estupro?
A fase inicial do acolhimento e atenção da equipe multidisciplinar é muito importante. Deve-se criar uma relação empática com a mulher e orientá-la de que ela tem direito de interromper ou não a gestação. É importante lembrar que individualmente a mulher deve assumir e tomar a decisão.
A equipe deve orientar que ela tem outras alternativas, como continuar com a gravidez. Neste caso deve-se garantir atendimento especializado, prioritário e equipe multidisciplinar durante todo o pré-natal. Alguns serviços se organizam para que a mesma equipe que atendeu a mulher durante o pré-natal acompanhe também o parto, a fim de garantir maior acolhimento.
Deve-se explicar também durante o pré-natal os procedimentos jurídicos para a adoção da criança após o nascimento, caso esta seja a escolha da mulher. Este é um procedimento protocolar conhecido e fácil de ser feito. Se a mulher não quiser ter acesso ao recém-nascido após o parto, isso também deve ser respeitado.
Mesmo que a mulher decida pela interrupção da gestação ela é esclarecida que pode optar pela suspensão ou pela desistência do procedimento quando ela quiser.
É legítima qualquer uma das duas opções da mulher. O que não se pode fazer é impor a opinião da equipe em relação à solicitação da mulher. A decisão é dela.
13. Qualquer hospital pode fazer aborto legal?
Sim, qualquer hospital plenamente habilitado e inscrito no sistema de saúde da Vigilância Sanitária pode fazer qualquer procedimento legal vigente no país, inclusive os hospitais privados.
As normas e portarias do Ministério da Saúde abordam questões do atendimento em serviços públicos, mas qualquer hospital que se sinta habilitado e que tenha uma equipe que se sinta habilitada pode fazer o procedimento. As técnicas são simples, com complicações mínimas e com menor risco reprodutivo de morte que outros procedimentos já realizados em hospitais, como partos difíceis, cesáreas, histerectomia e mastectomia, por exemplo. Do ponto de vista técnico, não há justificativa para essa recusa.
Para fazer a interrupção da gestação o hospital deve respeitar o que está escrito na norma: equipe multiprofissional, assinatura dos termos que compõem os documentos obrigatórios da interrupção e habilitação no site do Ministério da Saúde. Para isso, há o Cadastro Nacional de Estabelecimento de Saúde (CNES) com local onde se faz a inscrição dos serviços de atendimento à vítima violência sexual. Há um código de inscrição e nada impede que o serviço se inscreva para realizar atendimento emergencial, segmento ambulatorial e também interrupção da gravidez prevista em lei.
A maior dificuldade é a falta de informação dos profissionais de saúde, o medo de ser processado e o não conhecimento das normas e regras, que são simples. O avanço das técnicas medicamentosas, ou seja, o oferecimento de remédios com alta eficácia, tem facilitado muito o acesso e a adesão de profissionais e a garantia do direito às mulheres.
14. Poderia falar um pouco sobre subnotificação dos casos de morte materna por abortamento inseguro e legalização?
Com a ampliação dos comitês de morte materna e os estudos de investigação de morte de mulheres diminuiu muito a subnotificação. Mas o aborto ainda é o maior fator de subnotificação de morte materna. Isso porque o aborto é um procedimento ilegal, então sua realização entra na clandestinidade. Além disso, esses casos muitas vezes passam despercebido como sepse, ou como outro caso que nada tinha a ver com aborto inseguro.
Muitas vezes os dados mostram que a mulher morreu meses após o aborto inseguro, em uma UTI ou clínica, por insuficiência renal, por exemplo, que nem sequer tem relação com a causa inicial da morte, levando à subnotificação.
Ocorre também uma série de problemas na investigação dos óbitos maternos. Infelizmente no Brasil, nos lugares mais afastados da cidade, principalmente nas regiões norte e nordeste, muitas mortes sequer chegam a ser notificadas.
Os estudos que apontam o aborto inseguro fazem cálculos através de dados epidemiológicos, em razão do número de atendimentos de pacientes internadas por complicações de aborto, deduzindo alguns fatores (12,5% do atendimento no sistema privado, outra porcentagem em razão dos casos que são abortos espontâneos, etc). O Brasil tem, segundo o Ministério da Saúde, 503 mil abortos inseguros ao ano. Um estudo de 2015 do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), apontou 772 mil abortos como ponto médio (entre 500 a 850 mil abortos inseguros ao ano). A legalização do aborto traria à tona todos os dados de abortos que são inseguros, clandestinos, que hoje não entram na conta.
A legalização do aborto dá uma falsa impressão do aumento do número de casos. Nos países que descriminalizaram o aborto, como Suíça, Alemanha, França, Itália, Inglaterra e Estados Unidos, observamos um leve aumento inicial dos números, que é a captação dos casos que antes não apareciam. Em seguida há um decréscimo gradativo. Descriminalizar diminui taxa de aborto.
Se o objetivo for diminuir os abortos inseguros, deve-se:
15. Se houver um único médico na região e ele é contra o aborto. Deveria ele ser obrigado a pratica do crime mesmo sendo contra os ditames da sua consciência?
O Ministério da Saúde, em sua norma técnica Atenção Humanizada ao Abortamento colocou quais seriam as situações em que a objeção de consciência não poderia ser invocada em uma situação de aborto. Não se pode invocar objeção de consciência:
A mulher pode ser encaminhada à um serviço de referência que faça o aborto legal, desde que este atraso no atendimento não provoque um dano à sua vida ou à sua vida reprodutiva. Caso não se consiga encaminhar de forma ágil ou que se coloque a vida da mulher em risco, não pode haver recusa.
16. A descriminalização do aborto não seria uma forma de assegurar direito e autonomia da mulher e coibir o alto índice de morte materna por aborto inseguro?
Sim, exatamente isso. Todos os países que descriminalizaram e garantiram o acesso a interrupção da gestação reduziram as taxas de aborto e morte materna.
17. Quem pode alegar objeção de consciência no caso do aborto legal?
Apenas o médico provedor, que vai executar a ação, tem direito de alegar objeção de consciência. Não existe objeção de consciência coletiva, institucional. Não tem sentido o motorista da ambulância que vai levar a mulher que vai fazer interrupção da unidade A para unidade de referência dizer que é objetor de consciência, ou o maqueiro, ou a enfermagem. Sempre lembrando que antes da invocação de objeção de consciência é preciso garantir o direito à mulher de ter informação completa.
18. No caso de objeção de consciência qual a responsabilidade do gestor do hospital?
Ampla, total e irrestrita. O gestor do hospital tem que ter plena consciência de todos protocolos, da qualidade deles de sua equipe. Redução da objeção de consciência se dá tanto pelo objetor que vai assinar o Termo de Objeção de Consciência, mas também pelo gestor, que tem que garantir número de provedores para que aquele atendimento legal ocorra. Também não é justo que em uma instituição com 100 médicos 99 se dizem objetores e 1 único médico vai fazer o atendimento de interrupção de gravidez por violência, além de todos os atendimentos, com sobrecarga de trabalho. Ou se fazem concursos objetivos para esse procedimento ou se definem equipes multidisciplinares. É importante que a equipe de plantão dê prosseguimento ao processo de interrupção, quando medicamentosa, passando de um plantão para o outro, e nem por isso se interrompa processo de aborto legal.
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