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Principais Questões sobre Como Reduzir as Três Demoras

8 nov 2020

Sintetizamos as principais questões abordadas durante Encontro com o Especialista Rodolfo Pacagnella, docente do Departamento de Tocoginecologia da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, presidente do Comitê Nacional de Mortalidade Materna da Febrasgo e membro do Comitê de Maternidade Segura da FIGO, realizado em 25/07/2019.

  • A maioria das mulheres é saudável durante a gestação, no entanto, algumas vão desenvolver complicações ao longo desse processo.
  • O potencial de predição da morte materna é baixo. A maior parte das complicações maternas que levam à morte acontecem em mulheres que não tem riscos identificados previamente. 
  • Thaddeus e Maine identificaram que as mulheres que morrem decorrentes de condições relacionadas à gravidez chegam nas unidades de saúde em situações já tão graves que não é possível fazer nada pra salvar a vida delas. A demora na assistência dada às mulheres está relacionada com a morte, não simplesmente a condição de saúde que ela apresentava anteriormente. Essas autoras identificaram três fases em que a demora pode ocorrer:
    • Fase 1: Demora relacionada aos usuários – inclui demora na identificação da condição, na busca de cuidados médicos e recusa do tratamento oferecido. Tem relação com a educação, a economia e a autonomia da mulher no contexto familiar e social. Por exemplo, a gestante pode estar tendo sinais e sintomas de cefaléia, edema, ganho de peso excessivo recente e isso pode estar relacionado ao desenvolvimento de uma pré-eclâmpsia grave, mas ela pode não reconhecer isso como uma situação de gravidade e, portanto, pode não buscar atendimento médico.
    • Fase 2: Demora relacionada à acessibilidade ao serviço diz respeito à distribuição dos serviços, a distância, a forma de transporte, aos custos gerais do transporte que incluem dificuldade de obtenção dos suprimentos, de equipamentos médicos; isso está relacionado à forma como a mulher chega até a unidade de saúde que vai oferecer o cuidado necessário para ela.
    • Fase3: Demora relacionada aos cuidados médicos – diz respeito ao âmbito dos serviços médicos, à gestão e o sistema de apoio, inclui as demoras na determinação do diagnóstico e na implementação do tratamento adequado para a necessidade da mulher.
  • Essas demoras são intercambiáveis, uma influencia a outra e isso pode comprometer todo o cuidado prestado para a mulher em uma situação de gravidade.

 

Abaixo a gravação do Encontro na íntegra.

O Encontro com o Especialista é uma webconferência realizada quinzenalmente com especialistas de diversas áreas. Para participar é necessário se cadastrar no Portal de Boas Práticas uma única vez, assim você poderá enviar dúvidas que serão respondidas ao vivo e assistir às gravações de encontros passados!

Fique atento à agenda de Encontros com Especialistas.

 

Perguntas & Respostas

1. Qual o papel da atenção básica na redução das três demoras?

Considerando a equipe multidisciplinar e a ampla compreensão do contexto territorial local, a atenção primária tem ferramentas muito importantes para auxiliar que as mulheres e famílias identifiquem condições de gravidade e busquem a unidade de saúde no momento oportuno.

Duas das três demoras estão relacionadas à Atenção Básica, por isso ela pode influenciar muito na redução das demoras de maneira a, primeiro permitir a identificação dos riscos, melhorando a educação em saúde para que a mulher, sua família e seu contexto social comunitário consigam identificar as condições de gravidade. A partir da identificação dos sinais de gravidade ela buscar atendimento médico, diminuindo a demora da fase um e, consequentemente, ajudando a reduzir a demora da fase 3 (uma vez que reduz a patologia que leva à condição de maior gravidade). 

Além disso, vale lembrar que o pré-natal é momento ímpar para a identificação de condições de gravidade materna, como por exemplo os sinais precoces de pré-eclâmpsia (uma das maiores causas de morte materna no Brasil). 

Por fim, a atenção primária pode melhorar sua articulação com os serviços de saúde, a partir da organização da Rede, considerando os níveis de atenção secundário e terciário e o transporte adequado, quando necessário.

 

2. O que configura um caso de Near Miss? Como investigá-lo?

Near Miss são os casos de “quase morte”, ou seja, uma gestante que teve uma complicação grave na gestação, parto ou puerpério, teve a falência de algum órgão vital, mas sobreviveu dado um cuidado adequado. 

Os casos de near miss são casos sentinela. O ideal é que se investigue os casos desde o início: quando se desenvolveu essa condição de maior gravidade? Como foi o manejo desses casos? Como foi a organização do sistema de saúde em relação a isso?

Da mesma forma que se investiga os casos de morte materna para saber quais os pontos que precisam ser qualificados na Rede e na assistência, os casos de Near Miss também devem ser investigados, tanto a nível institucional como local, regional e estadual. A Organização Mundial de Saúde recomenda que se considere o Near Miss como um ponto de apoio para organização do sistema de saúde em urgência e emergência materna. 

 

3. Muitas mulheres chegam à maternidade de alto risco sem condições para ser prestada uma boa assistência. Como discutir isso com a rede e garantir que ela chegue antes de piorar?

Esse é um grande desafio. É importante que as instituições de referência para alto risco, as maternidades secundárias e terciárias, se comuniquem com a atenção primária e discutam com os gestores locais e regionais, como melhorar e qualificar esses serviços. Muitas vezes essas maternidades, essas instituições de referência, estão ligadas à instituições de ensino e é papel dessas instituições apoiar o sistema de saúde na qualificação e formação da Rede. 

Se a maternidade não buscar esse contato com a atenção básica, trabalhando no sistema de referência e contrarreferência, sempre ocorrerão os mesmos problemas de superlotação, de pacientes que chegam em condições que não são adequadas, em condições extremamente graves, o que dificulta o trabalho da unidade de referência. 

Outro ponto importante é a participação dos Comitês de Mortalidade Materna da instituição, da cidade e da região. A discussão dos casos de óbito e near miss tem papel fundamental nisso. Não é só demonstrar o que aconteceu e como aconteceu, os Comitês podem ajudar na organização da Rede.

 

4. Que tipo de treinamento é necessário dar para as equipes a fim de reduzir as três demoras?

Para reduzir as três demoras, três equipes precisam ser treinadas. 

A primeira é a equipe da unidade básica de saúde. Essa equipe precisa saber fazer um pré-natal de qualidade e também trabalhar com educação em saúde, ensinando as mulheres e a comunidade como identificar as situações de risco e em que locais buscar ajuda. Saber qual a maternidade de referência, qual o pronto socorro que ela pode buscar em situação de gravidade, é fundamental.

A segunda equipe que precisa ser treinada é a equipe de transferência, ou seja, quem vai fazer o transporte de urgência e emergência. Existem protocolos de transporte de paciente grave e existem protocolos de início ação em situações de maior gravidade, por exemplo: pré-eclâmpsia, hemorragia e sepse, que são as principais causas relacionadas à morte materna. O uso de sulfato de magnésio precocemente nos casos de pré-eclâmpsia, por exemplo, pode salvar a vida da mulher e as equipes precisam estar treinadas para isso.

A terceira equipe que precisa ser treinada é a equipe das unidade de referência e os prontos-socorros para darem assistência às condição de maior gravidade que, mais frequentemente, levam à morte (pré-eclâmpsia, condições hemorrágicas e condições infecciosas). A Febrasgo disponibiliza alguns manuais e protocolos para o treinamento das equipes. 

O treinamento deve ser feito a partir da disponibilização de protocolos e de treinamentos com simulação, que devem incluir tanto o reconhecimento como o manejo das principais causas de morte materna. A simulação de casos deve envolver toda a equipe e mobilizar conhecimentos e sentimentos para que o conteúdo seja melhor compreendido pelos profissionais.

 

5. Qual a forma de se organizar um sistema de monitoramento para as maternidades nesses casos? O que precisa ser levantado e como usar esses dados para que os casos de morte materna não se repitam?

O monitoramento de maternidades é um grande desafio. 

Há iniciativas de Instituições como a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Organização Panamericana de Saúde (OPAS) e a Unicamp para tentar desenvolver sistemas informatizados que possam disparar alertas, desde o pré-natal, até os sistema das unidades de pronto atendimento e de urgência e emergência. Esses alertas possibilitariam que se reconheça, durante a evolução desses casos, as situações que precisam ser priorizadas no atendimento. 

A OPAS já tem um sistema informatizado que permite ser integrado aos sistemas das maternidades para identificar casos de near miss. Esse é um sistema gratuito que pode ser disponibilizado e implementado em qualquer maternidade.

Também, o que pode ser feito dentro das maternidades é a utilização de alguns protocolos para identificação de casos de gravidade. Existe um protocolo da OMS que mostra como implementar o reconhecimento dos casos de near miss e como deve-se fazer a avaliação posterior, o feedback desses casos. É uma ferramenta extremamente interessante, desenvolvida por um brasileiro, e que auxilia as unidades de saúde a identificar e monitorar esses casos. 

Outra opção é ter pessoas específicas treinadas para identificar as situações de gravidade relacionadas aos casos de near miss e fazer um rodízio rotineiro nas enfermarias. Ou também treinar toda a equipe para fazer a identificação e monitoramento desses casos.

A partir da identificação dos casos de near miss e pode-se propor a organização de uma comissão para análise desses casos, levantando as condições em que essas mulheres chegaram, identificando as demoras e fazendo a articulação com a Rede, buscando apontar e sanar essas lacunas.

 

6. A vinculação da gestante tem alguma relação com as 3 demoras?

A vinculação da gestante reduz a segunda demora.

A partir do momento em que a gestante chega para o pré-natal, ela já deve saber qual a sua maternidade de referência para situações de urgência e emergência ou mesmo trabalho de parto. Isso é vinculação. Os estudos tem demonstrado que a vinculação da gestante e ações como oferecer dinheiro e passe para transporte público, quando necessário, podem reduzir a morte materna decorrente da segunda demora.

Essa é uma ação efetiva implementada pela Rede Cegonha a fim de evitar peregrinação das mulheres na busca por assistência. A vinculação reduziu esse tipo de peregrinação e, portanto, reduziu a demora do tipo dois. Isso oferece segurança para a paciente. 

Uma vez que a mulher chegue à maternidade de referência e não tem vaga, a maternidade é responsável por organizar e referenciá-la para outro local. Essa não é uma responsabilidade da mulher ou da família, mas do sistema de saúde e isso é uma mudança de paradigma.

 

7. Quais são os sinais de gravidade que atenção básica deve informar para a gestante e sua família?

As principais causas de mortalidade materna são: síndromes hipertensivas (principalmente a pré-eclâmpsia), hemorragia (principalmente a hemorragia pós-parto), sepse e problemas relacionados ao aborto inseguro. Dentre essas quatro causas principais de morte materna, a atenção primária é extremamente potente pra melhorar a identificação dos casos de pré-eclâmpsia, sepse e pra evitar as consequências de um aborto inseguro.

A pré-eclâmpsia é uma doença evolutiva que se instala a partir da segunda metade da gestação e vai cursar com o aumento da pressão arterial, alterações renais (demonstrada como proteinúria) e, na evolução da doença, a mulher retém líquido, acarretando edema generalizado que pode ter como reflexo o ganho de peso. As mulheres devem ser orientadas quanto ao ganho de peso excessivo em um curto espaço de tempo ao longo da gestação, aumento da pressão arterial. Em situações de maior gravidade podem trazer sintomas como cefaléia, principalmente nucal e que não melhora com repouso ou medicação habitual. Na evolução da doença pode ocorrer dilatação dos órgãos internos, principalmente do fígado, levando à lesão e dor na região direita do abdômen (diferente da contração). Ela pode perceber pontos brilhantes na visão, referir vertigem, sensação de mal-estar, tontura e falta de ar. O pré-natalista precisa reconhecer o ganho de peso excessivo durante a gestação e essa paciente deve fazer uma avaliação urinária para identificar proteinúria. Ao identificar proteinúria a mulher precisa ser referenciada, ainda que não tenha todos os sintomas.

Nos casos de sepse, qualquer situação de febre precisa ser investigada em uma unidade de saúde, preferencialmente de pronto atendimento. As mulheres devem saber que febre na gestação é um sinal de alerta, já que pode estar relacionada à uma infecção do trato urinário (ITU) ou à uma síndrome gripal. Essas são as duas principais causas de morte relacionadas à infecção e são preveníveis e tratáveis. 

Em relação ao aborto inseguro, a mulher deveria ter sido orientada, primeiro sobre o planejamento reprodutivo, antes mesmo da gestação. Em segundo lugar, se ela não deseja aquela gestação, se ela declara desejo de realizar interrupção voluntária da gestação, que não estão previstas em lei, o papel do profissional é orientá-la sobre as situações de gravidade e riscos que ela precisa saber identificar, a fim de procurar o sistema de saúde oportunamente. É responsabilidade do profissional oferecer educação em saúde e informação. Com isso pode-se reduzir a quantidade de mulheres que chegam com quadros muito graves relacionados ao aborto inseguro.

 

8. Há relação entre o near miss materno com a qualidade da assistência hospitalar?

O near miss é um ponto de referência para qualidade da assistência obstétrica. Isso significa que, se das mulheres que chegam na maternidade em situação de gravidade, as mulheres mais sobrevivem do que morrem, isso pode ser um indicativo de que a assistência está ocorrendo de maneira adequada. 

Esse indicador deve ser implementado na assistência hospitalar para monitoramento da qualidade. É importante conversar com os gestores sobre isso. Pode-se fazer esse monitoramento por meio de fichas que identificam esses casos e a organização de uma comissão que avalie os desfechos e proponha melhorias na assistência e na Rede.

 

9. Dentro das maternidades podemos ver muitas demoras desnecessárias, muitas vezes em troca de plantão ou em momentos de superlotação. Como reduzir isso?

Situações de superlotação exigem muito mais da equipe e a qualidade do atendimento pode diminuir. Para resolver isso é importante trabalhar e organizar a gestão do serviço. Nesse caso, por gestão entende-se a articulação com a Rede de saúde para evitar superlotação e melhor articulação e distribuição dos casos. 

Mesmo quando é necessário um grande investimento estrutural, é possível buscar estratégias de organização para apoiar e melhorar a qualificação da atenção primária e secundária para que elas possam assumir e acolher alguns casos em que habitualmente acabam encaminhado. 

Dentro da instituição hospitalar é possível melhorar a articulação. Não existe um caminho único pra isso, devendo ser pensado a partir da realidade de cada hospital. Mas deve-se elaborar rotinas de maneira que se consiga evitar lacunas entre as passagens de plantão. Existem formulários para a passagem de plantão, onde se anotam as condições das pacientes e como se está passando e recebendo plantão. Isso é possível de ser instituído. 

Nos casos de superlotação, a adequação da equipe com base na quantidade de pacientes que precisam ser atendidas, é essencial para oferecer uma assistência adequada. Deve-se identificar situações de maior vulnerabilidade, que são durante o momento de trabalho de parto e parto e, essencialmente, nas duas primeiras horas de puerpério. Nesses momentos as mulheres não podem ficar sem vigilância e monitoramento próximo. 

Isso é uma questão de gestão e como os serviços se organizam em relação aos profissionais de saúde e pacientes.

 

10. Há protocolos clínicos estabelecidos para abordagem segmentada de mulheres para seguimento do pré-natal ao puerpério, desse a atenção primária até assistência terciária. Eles são aplicáveis e aplicados pelas equipes nos serviços de saúde brasileiros?

Sim. Existem protocolos do Ministério da Saúde, das Sociedades, das Secretarias Estaduais de Saúde sobre a assistência, desde o reconhecimento e identificação da gravidez até o puerpério. Um dos principais gargalos para redução da mortalidade materna não é a falta de protocolos assistenciais, mas sua implementação.

Os problemas costumam esbarrar, não na execução do protocolo, mas na sua implementação. E o que permite a implementação adequada dos protocolos são as pessoas que estão trabalhando no local e o comprometimento das equipes pra isso. Isso exige a participação dos gestores, participação e comprometimento dos profissionais de saúde e a articulação da gestão dos diversos níveis de assistência. 

 

11. As maternidades em geral trabalham com grandes volumes de situações que não demandam intervenção de suporte a vida, tipo: reanimação cardiorrespiratória, manutenção de volemia e etc. E quando isso acontece, parece que as equipes não estão preparadas. Como resolver?

Situações de gravidade são raras, felizmente. E tudo que é muito raro, que não acontece com muita frequência, é comum que os profissionais se esqueçam. Por isso é essencial treinamento regular. As instituições, as maternidades, precisam ter mecanismos de qualificação permanente das equipes. 

É preciso que se utilize simulação em determinadas circunstâncias. Pode-se organizar uma rotina de um dia por mês a instituição fazer treinamentos, com separação de equipes em salas em momentos diferentes simulando uma situação problema. Ao longo do ano se cobrirá todas as necessidades relacionadas às condições problemas. As evidências apontam que isso está relacionado à melhor assistência obstétrica.

 

12. Além da rede de serviços de saúde, as condições de vida (renda, educação, escolaridade) da mulher pode expô-las ou protegê-las à demora da assistência?

Sim. Existem situações que estão relacionadas à condição de educação, condição de acessos aos serviços de saúde. As evidências mostram que quanto melhor a educação formal, quanto melhor o status econômico ou acesso aos serviços, menores são as demoras do tipo 1 e 2. No entanto, a demora da fase três não tem influência, ou tem pouca, em relação às condições de vida das mulheres. 

Ainda que não haja melhora dos indicadores de vida, é possível reduzir as demoras. Existem exemplos no mundo todo onde observou-se redução da mortalidade materna sem que houvesse aumento da renda e das condições de saúde da população. Para tanto, bastou uma adequada organização do sistema de saúde e priorização da mulher dentro daquele sistema de saúde.

 

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