Sistematizamos as principais questões sobre Diagnóstico do Abortamento enviadas pelos usuários do Portal durante Encontro com a Especialista Fernanda Campos, Médica Obstetra, Professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), realizado em 09/08/2018.
O abortamento é um problema de saúde pública que tem maior incidência nos países em desenvolvimento e é uma das causas importante de mortalidade materna no mundo, inclusive no Brasil. Abortamento é a interrupção da gravidez até 20 semanas ou até o feto atingir 500g de peso. Os erros de diagnóstico são muito frequentes.
Quando a mulher chega no serviço de emergência com dor ou sangramento, no primeiro trimestre de gravidez, dois diagnósticos vêm à mente: o abortamento e a gravidez ectópica. O abortamento pela prevalência e a gravidez ectópica pela gravidade.
Para auxiliar nesse diagnóstico e chegar à uma etiologia correta é necessário lançar mão de anamnese, exame físico, ultrassonografia transvaginal e dosagem Beta-HCG.
O diagnóstico precoce diminui as complicações maternas. Atualmente, a maioria das gestações ectópicas são diagnosticadas em uma fase ainda assintomática, quando não há alterações hemodinâmicas. Ainda assim, há muitos erros na interpretação destes exames, o que leva à má prática e aos litígios.
Para dizer que a mulher está passando por uma ameaça de abortamento, é preciso ter uma gravidez tópica, com embrião com batimento cardíaco presente. Isso significa que na ameaça de abortamento a gestação é viável.
Para dizer que o abortamento é inevitável é preciso preencher os critérios de gravidez interrompida, ou seja, não viável. Junto com o achado ultrassonográfico a mulher apresenta dor e sangramento.
Em relação à conduta, é importante juntar a história clínica da mulher, com o exame físico, ultrassom e Beta-HCG.
É importante definir se esta mulher está hemodinamicamente estável ou não. Se há sinais de choque, como por exemplo choque hipovolêmico. Nesse caso, ela precisa de cirurgia imediata. Se há abortamento incompleto, há necessidade de esvaziamento da cavidade uterina por AMIU ou curetagem. Se há suspeita de gestação ectópica a mulher precisa ir para reparação cirúrgica por laparotomia.
Quando a mulher está assintomática, é necessário cuidado redobrado no diagnóstico da gravidez não viável. No caso de mulher com instabilidade hemodinâmica é importante não hesitar e intervir.
É preciso ter cuidado com o nível de Beta-HCG, pois ele nem sempre será determinante para indicar um procedimento cirúrgico.
Abaixo a gravação do Encontro na íntegra.
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Perguntas & Respostas
1. Como identificar se a gestação ainda é viável sem realização de ultrassonografia?
Enquanto não tivermos comprovação de embrião com batimento cardíaco dentro do útero através de ultrassonografia, não é possível saber se a gravidez é viável.
Se a mulher tem atraso menstrual e Beta-HCG subindo, isso sugere fortemente que estamos diante de uma gravidez viável. Se a mulher não tem sintoma nenhum, não há motivos para pedir Beta-HCG de repetição. O recomendado é aguardar o momento do ultrassom transvaginal indicado por volta de 12 semanas. Se a mulher tem sintomas, dor e sangramento o ideal é que se faça dosagem seriada do Beta-HCG, já que espera-se um aumento dele de acordo com a evolução da gravidez. O Beta-HCG sobe mais na gravidez viável do que na ectópica ou no abortamento, onde seus níveis acabam diminuindo.
2. Se a mulher não verbaliza que houve situação de abortamento anterior à entrada na maternidade, o profissional pode identificar se o aborto foi espontâneo ou provocado? Isso diferencia a conduta?
Se fazemos o atendimento da mulher em uma situação de abortamento, seja ele provocado ou espontâneo, a mulher está procurando o serviço de urgência porque tem dores e sangramento.
O abortamento provocado vai fazer diferença se estivermos diante de um quadro de um abortamento infectado. Há tendência de pensar que no abortamento provocado há maior risco de infecção, porque sabemos que as mulheres no Brasil são submetidas à abortamentos provocados em condições longe do ideal. Então este risco existe.
Se a mulher não falar se o aborto foi espontâneo ou provocado podemos avaliar clinicamente, através de exames laboratoriais e da situação que ela apresenta em relação a ter uma estabilidade clínica ou não para conduzir esse abortamento. Se ela estiver bem, sem alterações hemodinâmicas, talvez não mude a conduta.
Para a suspeita de abortamento provocado, existe o risco da perfuração. Se essa for a suspeita é necessário tentar avaliar com auxílio de ultrassom a presença de sangue na cavidade abdominal. Este seria um sinal indireto, que poderia levar à um abdômen agudo, um quadro clínico parecido com gravidez ectópica.
Ainda assim, o ideal é que a mulher relate pra equipe, pois isso facilita o atendimento.
3. Quais as principais condutas a serem tomadas frente à uma mulher admitida no serviço por abortamento?
A primeira coisa que serve para qualquer situação na emergência é avaliação dos sinais vitais. Isso pode ser feito pela enfermeira, na Classificação de Risco, observando se a mulher está corada ou não está corada, sua pressão arterial, frequência cardíaca, etc. São os sinais vitais que vão falar sobre a gravidade. Classificamos primeiro a gravidade daquela situação e se ela for uma mulher grave, instável, em choque ou próximo à um choque, que está sangrando, exteriorizando muito o sangramento, temos que agir e tomar alguma atitude de forma mais rápida. Se tiver disponibilidade de ultrassom, é importante que seja utilizado. Também fazer exame físico e complementar com exame especular. Importante, se no exame especular já se observa a saída de restos ovulares, já podemos iniciar a reposição volêmica e colher sangue para o laboratório a fim de avaliar o hemograma, coagulograma, tipo sanguíneo. Se necessário, pode-se solicitar reserva de sangue.
No toque vaginal é possível avaliar se o colo uterino está aberto ou se está fechado. Em casos onde a mulher está sangrando muito, instável, e fazemos um diagnóstico clínico de aborto incompleto, observando saída de resto ovular, não há necessidade de ultrassom. Nessa situação a mulher deve ser submetida à reposição volêmica e à procedimento cirúrgico para esvaziamento da cavidade uterina assim que possível.
Em situações em que não há tanta gravidade, podemos fazer uma investigação com mais calma para determinar a forma clínica de abortamento que está realmente se apresentando.
O mais importante é trazer o parceiro ou família para o atendimento, conversar. É importante dizer tudo que está sendo feito e tudo que se pretende fazer, pois a mulher em situação de abortamento está realmente fragilizada. Isso é humanização do atendimento, isso é boa prática. Ela deve, desde o momento que chega na recepção da maternidade, ser acolhida e ser respeitada. Mesmo em uma situação de emergência é possível.
4. Tenho dificuldade de abordar esse tema com a minha equipe. Cada um já tem um pré-julgamento sobre o assunto e isso varia o atendimento. Que respaldo clínico e legal eu tenho para dizer o que é ou não uma boa prática?
O caminho é cuidar e acolher sempre.
Pré-julgamentos não melhoram o atendimento.
A mulher que está se apresentando para um atendimento de emergência está com dor, sangrando, está em uma situação de abortamento. Ela deve ser acolhida e o nosso papel enquanto profissional de saúde é cuidar. Cuidar no sentido amplo da palavra. Isso não significa simplesmente resolver o problema clínico. Não é só enxergar aquela mulher como uma doença, um problema. O cuidado deve estar acima de tudo.
Quanto melhor conseguirmos fazer isso, mais a mulher vai conversar, se abrir. E teremos uma história clínica de melhor qualidade, com mais informações. A mulher vai se sentir mais segura e o papel do profissional de saúde é esse.
Em muitas situações as mulheres chegam procurando a emergência com medo e desconfiadas. Se conseguimos deixá-la à vontade, se sentindo respeitada, elas vão conversar mais e assim, somente nessa situação, ela consegue falar se o aborto realmente foi provocado e se houve algum tipo de manipulação. Essa informação ajuda o profissional a determinar qual será a conduta a ser adotada.
5. Há necessidade de registro sobre a forma clínica do abortamento? De que forma isso colabora com a prática?
As formas clínicas de abortamento são importantes porque indicam diagnósticos diferentes, por isso precisam estar bem documentados em prontuário médico.
Precisamos ter muito cuidado com o registro. Ele deve ser o mais completo possível, por questões de segurança. Se não foi possível definir a forma clínica do abortamento em que a mulher está e existindo uma situação de gravidez de viabilidade indeterminada por exemplo, isso deve ser registrado.
A história clínica deve ser registrada, o exame físico, Beta-HCG que ela trouxe, exame de urina, ultrassom que mostra o saco gestacional, tudo deve ser anotado no prontuário. Não sendo possível definir a viabilidade da gravidez é importante orientar um retorno.
Em relação às formas clínicas, se existe uma ameaça de abortamento, quanto mais se explique dentro de um relatório médico, de um prontuário, de um boletim de atendimento médico, melhor. Se em algum momento esse documento chegar à uma situação de litígio e for solicitado por um juiz, ele provavelmente irá solicitar a opinião de um perito. É importante que todas as informações estejam completas.
Em relação à conduta clínica, ela não vai mudar. Se o abortamento é completo não há nada para fazer. Solicitamos o tipo sanguíneo, fazemos imunoglobulina e este aborto está resolvido. Se é um aborto incompleto precisamos definir será necessário fazer o esvaziamento da cavidade uterina ou não, de acordo com o que for conversado com a mulher. No abortamento retido funciona da mesma forma, podendo ser a conduta expectante ou uma conduta de esvaziamento da cavidade.
6. Em geral os casos de abortamento têm mais tempo de espera que os casos de parto, no atendimento nos serviços. Isso pode ter impacto nos resultados para a viabilidade da gravidez?
Os serviços de emergência de qualidade devem fazer Classificação de Risco, pois é uma boa prática. A Classificação de Risco é um atendimento feito por uma enfermeira treinada e que através de uma rápida história e aferição dos sinais vitais vai classificar a mulher em relação à urgência do atendimento. Isso vale para todas as mulheres que procuram o serviço de emergência.
Por exemplo, uma mulher que rompeu a bolsa em uma gravidez a termo, está perdendo líquido, não está sentindo dor e tem seus sinais vitais normais, vai ser classificada em um grau de urgência menor. Por outro lado, uma mulher que está em uma situação de abortamento, sangrando muito, deve ser atendida primeiro. Já uma mulher em fase ativa de trabalho de parto tem maior urgência em ser atendida se comparada à uma mulher que tem um sangramento em pequena quantidade, ou dor fraca. A Classificação de Risco vai identificar a gravidade, independente da doença de base ou do diagnóstico da mulher. Aquela que está sangrando muito vai ser atendida primeiro, sempre. A que está com muita dor vai ser atendida na frente sim, antes daquela que está em início de trabalho de parto ou que só rompeu a bolsa. A urgência que temos no atendimento está relacionada à gravidade clínica que a mulher apresenta naquele momento, independente do diagnóstico clínico que ela tem, abortamento ou parto.
Não há medidas eficazes de preservação da gravidez que está em uma situação de ameaça de abortamento, então se a mulher esperou para ser atendida, 30 minutos a mais ou a menos não faz diferença. A mulher que está em uma ameaça de abortamento, ou seja, apresentando sangramento e tem embrião com batimento cardíaco e se for visto algum hematoma na ultrassonografia, não temos muito a oferecer: somente repouso e afastamento do trabalho.
7. O aborto é classificado pelas semanas ou pelo peso? Há diferença de conduta se ele ocorre antes ou depois de 12 semanas?
Os dois. Semanas e/ou peso. Classificamos como aborto a gravidez que se interrompe antes de 20 semanas e feto com até 500 gramas. Na legislação é dessa forma.
O número é importante. Claro que esses números mais ou menos batem: o feto de 20 semanas tem aproximadamente 500 gramas.
Às vezes a mulher não tem uma datação correta da gravidez. Se a mulher tem uma gravidez de 20 semanas e o feto é maior que 500g não podemos colocar como abortamento.
Se o abortamento ocorre antes ou depois de 12 semanas, na situação do abortamento retido, há diferença na conduta sim. O ideal na gravidez acima de 12 semanas é que se faça o esvaziamento da cavidade uterina. A primeira opção deve ser a medicação, ou seja, indução do trabalho de abortamento (com misoprostol, por exemplo). Depois que o conteúdo (feto e placenta) forem eliminados, aí sim procedemos com o esvaziamento da cavidade. Numa gestação interrompida antes de 12 semanas o útero pode ser esvaziado direto, se essa for a opção acordada com a mulher. Se ela não quiser uma conduta expectante, por exemplo, podemos ir direto para o esvaziamento cirúrgico, sem ter que esperar que o conteúdo saia, como recomendado como boa prática na gravidez acima de 12 semanas.
8. Tenho dúvidas relacionadas à conduta a ser empregada no caso da gestação ectópica. E como diferenciar?
Trabalhando em emergência, ficamos realmente preocupados pelo potencial de dano que uma gestação ectópica pode causar para a mulher.
A primeira dificuldade é o diagnóstico. Se temos uma gestação em que o Beta-HCG está subindo devagar, não subindo como o esperado, podemos realmente precisar do ultrassom para confirmar a gravidez. A imagem de ultrassom também pode ser traiçoeira. Ela varia muito, tem muita imagem diferente de ultrassom que indica gravidez na trompa.
Quando se vê embrião com batimento cardíaco na trompa é fácil. Mas isso não ocorre na maioria dos casos. Na maioria das vezes vemos uma massa heterogênea, pequenininha, na trompa. Pequenininha de 1,5 a 2cm. E por ser pequena não é fácil de visualizar. É necessário ter examinadores experientes em ultrassom. Também, é importante que o serviço tenha ultrassom disponível, senão é necessário encaminhar a mulher com suspeita de gestação ectópica para que faça um ultrassom. Estamos excluindo aquela situação da mulher que está grave, instável, em situação de choque. Essa precisar ir para a cirurgia de urgência, não há outra forma.
Há também a situação onde os níveis Beta-HCG vão subindo e não achamos imagem da gravidez em lugar nenhum. Ficamos com medo da gestação ectópica. Se neste caso a mulher está estável, podemos ir seguindo para ver o que vai acontecer: se vamos achar uma gravidez.
A segunda dificuldade é o que fazer frente ao diagnóstico. Se há gravidez ectópica diagnosticada e suspeitamos que ela esteja na trompa, que é mais comum, existem algumas opções de conduta. O mais definitivo e mais usado é encaminhar a mulher para o procedimento cirúrgico: laparoscopia, se tiver acesso. Existe também o tratamento medicamentoso, indicado para casos selecionados. São opções que devem ser discutidas com a mulher. Se há sangue na cavidade abdominal, se a mulher tem muita dor, se apresenta Beta-HCG muito alto (acima de 5000 mlU/ml), se tem um embrião na trompa com batimento, são todas situações que o tratamento clínico não deve ser encorajado. São situações em que a resposta do tratamento clínico é muito ruim, então deve-se optar pelo tratamento cirúrgico.
No caso da mulher não relatar sintoma nenhum, tendo uma gravidez ectópica com Beta-HCG baixo, e se na imagem o saco gestacional é pequeno, sem embrião com batimento, o tratamento clínico é possível. Não que ele seja obrigatório. Nesse caso, é possível ser feito com metotrexate. Isso deve ser discutido com a mulher, pois o tratamento medicamentoso tem uma taxa de falha. Nesse caso a mulher acaba indo para procedimento cirúrgico da mesma forma. Por isso o tratamento medicamentoso deve ser usado em casos selecionados.
Existe também a situação de vermos a gravidez na trompa e os valores do Beta-HCG estarem caindo. Esse pode ser um aborto tubário e podemos ter uma conduta expectante.
Esse diagnóstico não é fácil. Na dúvida temos que pedir uma segunda opinião, pedir ajuda à outro colega. E se possível esperar, pedir retorno dessa mulher no serviço de saúde para fechar diagnóstico e escolher a melhor conduta para o caso dela.
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