Sistematizamos as principais questões abordadas durante Encontro com o Especialista Marcos Ymayo, Médico Obstetra, Diretor técnico da ALSO Brasil, realizado em 20/01/2022.
Veja também: Postagem sobre o tema
A anemia falciforme é a doença hereditária mais comum no Brasil. A gestação é uma situação potencialmente grave para as mulheres com essa doença, uma vez que as alterações fisiológicas da gravidez tem potencial para agravar, tanto para a mãe como para o feto, as complicações da doença falciforme, especialmente pelo aumento das demandas metabólicas, hipercoagulação sanguínea e estase vascular.
As complicações são mais graves e mais frequentes nas formas homozigotas (SS) e nos locais com menos recursos diagnósticos e de acompanhamento. É muito importante que a gestante com doença falciforme seja encaminhada ao pré-natal de alto risco para acompanhamento com equipe multidisciplinar, tanto dentro da hematologia como na obstetrícia.
Principais questões relacionadas ao cuidado pré-natal
O acompanhamento multidisciplinar no pré-natal deve incluir encontros frequentes com profissionais da hematologia e da obstetrícia, com envolvimento de todos no plano de cuidados, especialmente nos casos de dor aguda que a mulher possa apresentar.
É importante que haja protocolos específicos e individualizados para detecção precoce, indicações transfusionais oportunas e manejo das complicações da doença falciforme.
Em relação aos exames pré-natais e suplementações, todo o cuidado deve ser organizado para identificar e prevenir fatores de risco. Deve-se atentar para:
Atenção: a hidroxiuréia é contra-indicada na gestação
A avaliação do bem-estar fetal é feita por meio de perfil biofísico fetal e ultrassom, principalmente no segundo e terceiro trimestres, para identificar se há restrição de crescimento intrauterino, pela possibilidade de isquemia placentária.
Na doença falciforme, a demanda por oxigênio pode aumentar por diversos fatores, incluindo anemia, distúrbios respiratórios do sono, hipoxia e/ou asma. Não há evidência forte do uso de oxigenoterapia profilática noturna, mas estudos sugerem que seu uso pode diminuir as exigências e complicações transfusionais, particularmente em indivíduos de alto risco. Devemos manter a paciente com saturação de O2 acima de 95%.
Intercorrências no pré-natal
As principais intercorrências durante o pré-natal das mulheres com doença falciforme iniciam com episódios de dor aguda. Faz-se necessário que a equipe esteja atenta e intervenha oportunamente nesses casos.
Abordagem dos episódios de dor aguda:
Uso de anti-inflamatórios não hormonais é contraindicado na gestação!
Eventos que ameaçam a vida
Os eventos ameaçadores da vida são precedidos por episódios agudos dolorosos; é fundamental tratar efetivamente os episódios vaso-oclusivos e monitorizar os primeiros sinais de eventos que ameaçam a vida, o que inclui a monitorização de exames relacionados às funções pulmonar, hepática, renal e sinais e sintomas relacionados ao sistema nervoso central.
A maior parte das mortes durante a gravidez na doença falciforme são repentinas, causadas por eventos agudos que evoluem para falência aguda de múltiplos órgãos. São manifestações de gravidade:
Ao receber uma mulher com doença falciforme em episódio de dor aguda, as primeiras condutas devem ser a hidratação intravenosa, para manter o volume vascular, e a terapia com oxigênio, conforme necessário para manter a saturação de O2 acima de 95%. A terapia transfusional é frequentemente necessária antes da conclusão da avaliação e do diagnóstico diferencial para interromper a progressão da doença.
O diagnóstico diferencial deve ser expandido para as doenças relacionadas à gravidez, em especial as síndromes hipertensivas com sinais de deterioração (cefaleia, alterações visuais, convulsões), eclâmpsia e síndrome HELLP (deterioração hepática e hemólise).
A terapia transfusional é indicada para tratar as complicações agudas, para o preparo pré-operatório de cirurgias – incluindo cesariana – e também há alguns serviços que a utilizam de maneira preventiva.
Os critérios para adotar a terapia transfusional são:
Em relação à transfusão profilática, há poucos dados científicos disponíveis e seu uso é controverso, mas já existe uma diretriz da Sociedade Americana de Hematologia (Chout et al, 2020) que recomenda seu uso para mulheres com histórico de complicações graves, com outros riscos gestacionais – como as portadoras de outras comorbidades ou nefropatias – além daquelas que desenvolvem complicações durante a gravidez atual. O Ministério da Saúde do Brasil não adotou essa diretriz até o momento (BRASIL, 2006).
Conduta no trabalho de parto e parto
A indicação da via de parto para as gestantes com anemia falciforme é obstétrica. Não há contraindicação para parto vaginal e nem indicação de idade gestacional para interromper a gravidez com boa evolução, desde que não tenha complicações materna e fetais.
Indução de parto ou interrupção da gestação por cesariana seguem os mesmos critérios obstétricos de gestantes sem doença falciforme.
Durante o trabalho de parto a parturiente deve ser mantida bem oxigenada, com saturação de oxigênio maior ou igual a 95%, aquecida (cuidado com a temperatura do ar-condicionado), hidratada, com monitoramento eletrônico contínuo da frequência cardíaca fetal. A analgesia é útil para reduzir as demandas cardíacas maternas secundárias à dor e ansiedade do parto.
Para os casos de cesariana, deve-se cuidar para manter a gestante bem hidratada, com saturação de oxigênio maior que 95% e se possível e necessário, realizar transfusão sanguínea simples, com a finalidade de manter a hemoglobina entre 10 e 11g/dl. Anestesia regional é preferível à anestesia geral e deve-se atentar para equilíbrio hídrico, porque há risco aumentado de retenção hídrica, especialmente entre as mulheres com cardiomiopatia subclínica.
No pós-parto, especialmente em caso de cesariana, é necessária uma vigilância especial aos sintomas de desidratação, infecções e trombose. É recomendada antibioticoprofilaxia conforme o protocolo da instituição, além da manutenção da saturação de oxigênio acima de 95% e estímulo à deambulação precoce.
Abaixo, gravação do Encontro na íntegra.
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Perguntas & Respostas
1. O pré-natal e parto da mulher com doença falciforme são considerados de alto risco?
Sim, gravidez e parto de mulheres com doença falciforme são considerados de alto risco e necessitam de acompanhamento de equipe multidisciplinar e especializada.
2. Os testes de rastreamento de hemoglobinopatias, realizados no início do pré-natal, são realmente necessários e efetivos? Há estudos sobre a eficácia desses testes?
O rastreamento das hemoglobinopatias é fundamental, uma vez que essas doenças são normalmente subdiagnosticadas. Há pouca evidência disponível em doença falciforme, assim como não há evidências fortes para muitas recomendações. Existem bons estudos sobre o tema, mas muitos esbarram em um número pequeno de pacientes por não ser uma doença tão comum. No entanto, é uma oportunidade importante para fazermos o diagnóstico.
3. Existe alguma recomendação pré-concepcional para as mulheres que tem a doença falciforme e querem engravidar?
Sim, é importante o aconselhamento com especialista para informar a mulher sobre o transcorrer de uma gestação com doença falciforme, para que ela tenha ciência da condução que é feita nesses casos e para que possa interromper o uso da hidroxiuréia.
4. Quais as possíveis complicações que a doença falciforme pode causar durante o pré-natal, parto e puerpério?
As complicações mais graves são a síndrome torácica aguda, o tromboembolismo, trombose venosa profunda, embolia pulmonar, hipertensão pulmonar, desenvolvimento de pré-eclâmpsia e eclâmpsia, além das complicações relacionadas às transfusões.
5. Sobre a via de parto, há alguma recomendação específica?
A principal recomendação é o parto vaginal espontâneo, e dar suporte para que essa mulher entre em trabalho de parto em condições dignas – mantê-la bem hidratada, oxigenada, aquecida, por exemplo.
6. Há risco de parto prematuro?
Sim, é uma das complicações da gestação com doença falciforme.
7. Há algum método não farmacológico de alívio da dor que pode ser empregado durante a gestação na mulher com doença falciforme?
Sim, há uma série de métodos que precisam ser individualizados de acordo com o que a mulher já conhece e utiliza. Normalmente essas mulheres têm um bom conhecimento de quais terapias alternativas funcionam melhor para elas. As mais utilizadas são massagens, bolsas de água quente, controle mental; são várias técnicas que podem ser utilizadas durante o pré-natal.
Referências citadas:
Como citar
FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira. Portal de Boas Práticas em Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente. Postagens: Principais Questões sobre Gestação na Doença Falciforme. Rio de Janeiro, 04 nov. 2022. Disponível em: <https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/atencao-mulher/principais-questoes-sobre-gestacao-na-doenca-falciforme/>.