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Principais Questões sobre Gestação na Doença Falciforme

4 nov 2022

Sistematizamos as principais questões abordadas durante Encontro com o Especialista Marcos Ymayo, Médico Obstetra, Diretor técnico da ALSO Brasil, realizado em 20/01/2022.

Veja também: Postagem sobre o tema

A anemia falciforme é a doença hereditária mais comum no Brasil. A gestação é uma situação potencialmente grave para as mulheres com essa doença, uma vez que as alterações fisiológicas da gravidez tem potencial para agravar, tanto para a mãe como para o feto, as complicações da doença falciforme, especialmente pelo aumento das demandas metabólicas, hipercoagulação sanguínea e estase vascular.

As complicações são mais graves e mais frequentes nas formas homozigotas (SS) e nos locais com menos recursos diagnósticos e de acompanhamento. É muito importante que a gestante com doença falciforme seja encaminhada ao pré-natal de alto risco para acompanhamento com equipe multidisciplinar, tanto dentro da hematologia como na obstetrícia.

 

Principais questões relacionadas ao cuidado pré-natal

O acompanhamento multidisciplinar no pré-natal deve incluir encontros frequentes com profissionais da hematologia e da obstetrícia, com envolvimento de todos no plano de cuidados, especialmente nos casos de dor aguda que a mulher possa apresentar. 

É importante que haja protocolos específicos e individualizados para detecção precoce, indicações transfusionais oportunas e manejo das complicações da doença falciforme.

Em relação aos exames pré-natais e suplementações, todo o cuidado deve ser organizado para identificar e prevenir fatores de risco. Deve-se atentar para:

  • A dosagem do nível de hemoglobina e painel de análises clínicas devem ser realizados mensalmente, a fim de ajudar na identificação precoce de pacientes com maior risco de complicações agudas;
  • EAS e Urocultura devem ser repetidos mensalmente para detecção e tratamento precoce de bacteriúria assintomática;
  • Boa parte das mulheres com doença falciforme são também aloimunizadas; a avaliação deve ser realizada na primeira consulta pré-natal e, se negativa, repetir de 24 a 28 semanas, na admissão para qualquer internação e para o parto. As mulheres com aloanticorpos devem ser avaliadas quanto ao risco de doença hemolítica do feto e tratadas de acordo;
  • Triagem das síndromes hipertensivas: a gestante com doença falciforme tem risco aumentado para desenvolver pré-eclâmpsia. A rotina hipertensiva deve ser acompanhada de maneira regular. É recomendado o uso de aspirina de baixa dosagem (80 a 150 mg/dia) desde o início do segundo trimestre até 5 a 10 dias antes da data esperada no parto como prevenção de doença hipertensiva.
  • Em relação às suplementações, a deficiência de ferro não é comum nas mulheres com doença falciforme, mesmo entre as anêmicas, porque hemólises crônica e transfusões sanguíneas de repetição frequentemente resultam em estoques de sangue adequados ou excessivos. Portanto, a suplementação de ferro deve ser evitada, a menos que a deficiência de ferro seja documentada por um baixo nível de ferritina sérica;
  • Já a suplementação com ácido fólico deve ser continuada durante a gravidez, em doses maiores do que as habituais; recomenda-se a dose de 5 mg/dia.
  • A doença falciforme também aumenta a chance de tromboembolismo venoso, sendo necessário fazer profilaxia nas pacientes que tem fatores de risco, principalmente nas mulheres com histórico de tromboembolismo no passado.

Atenção: a hidroxiuréia é contra-indicada na gestação

  • Além dos exames e suplementações, atenção especial deve ser dirigida aos sintomas gestacionais:
    • As náuseas e vômitos comuns na gestação podem aumentar a incidência dos episódios dolorosos agudos nas gestantes com anemia falciforme, portanto, é imprescindível prevenir a desidratação.
    • Caso a gestante tenha sintomas neurológicos, é importante distinguir se eles são do quadro da doença falciforme ou se são da doença hipertensiva.

A avaliação do bem-estar fetal é feita por meio de perfil biofísico fetal e ultrassom, principalmente no segundo e terceiro trimestres, para identificar se há restrição de crescimento intrauterino, pela possibilidade de isquemia placentária.

Na doença falciforme, a demanda por oxigênio pode aumentar por diversos fatores, incluindo anemia, distúrbios respiratórios do sono, hipoxia e/ou asma. Não há evidência forte do uso de oxigenoterapia profilática noturna, mas estudos sugerem que seu uso pode diminuir as exigências e complicações transfusionais, particularmente em indivíduos de alto risco. Devemos manter a paciente com saturação de O2 acima de 95%.

 

Intercorrências no pré-natal

As principais intercorrências durante o pré-natal das mulheres com doença falciforme iniciam com episódios de dor aguda. Faz-se necessário que a equipe esteja atenta e intervenha oportunamente nesses casos.

Abordagem dos episódios de dor aguda:

  • A primeira conduta nos casos de dor aguda é descobrir e tratar a causa. As mais comuns são a desidratação, hipóxia, acidose, infecção e frio.
  • O controle da dor durante a gestação é feito exatamente como fora da gestação, e deve ser individualizado. Abaixo estão listadas as principais opções terapêuticas:
    • Para dor leve: acetaminofeno.
    • Para dor moderada: hidrocodona com ou sem acetaminofeno.
    • Para dor intensa: opiáceos são a terapia de escolha e analgesia peridural pode ser apropriada para alguns casos.
    • Ainda para dor leve e moderada, estratégias não farmacológicas (massagem, almofadas aquecidas, técnicas de controle mente-corpo) podem ser suficientes para controlar a dor ou acelerar a recuperação; as mulheres com doença falciforme costumam conhecer as estratégias que melhor se adequam a elas, por isso é essencial individualizar os casos e seguir o plano de assistência proposto para cada mulher.

 Uso de anti-inflamatórios não hormonais é contraindicado na gestação!

 

Eventos que ameaçam a vida

Os eventos ameaçadores da vida são precedidos por episódios agudos dolorosos; é fundamental tratar efetivamente os episódios vaso-oclusivos e monitorizar os primeiros sinais de eventos que ameaçam a vida, o que inclui a monitorização de exames relacionados às funções pulmonar, hepática, renal e sinais e sintomas relacionados ao sistema nervoso central.

A maior parte das mortes durante a gravidez na doença falciforme são repentinas, causadas por eventos agudos que evoluem para falência aguda de múltiplos órgãos. São manifestações de gravidade:

  • Síndrome torácica aguda
  • Embolia pulmonar
  • Isquemia cerebral (AVC)
  • Cardiomiopatia
  • Hipertensão Pulmonar
  • Síndrome HELLP

Ao receber uma mulher com doença falciforme em episódio de dor aguda, as primeiras condutas devem ser a hidratação intravenosa, para manter o volume vascular, e a terapia com oxigênio, conforme necessário para manter a saturação de O2 acima de 95%. A terapia transfusional é frequentemente necessária antes da conclusão da avaliação e do diagnóstico diferencial para interromper a progressão da doença.

O diagnóstico diferencial deve ser expandido para as doenças relacionadas à gravidez, em especial as síndromes hipertensivas com sinais de deterioração (cefaleia, alterações visuais, convulsões), eclâmpsia e síndrome HELLP (deterioração hepática e hemólise).

A terapia transfusional é indicada para tratar as complicações agudas, para o preparo pré-operatório de cirurgias – incluindo cesariana – e também há alguns serviços que a utilizam de maneira preventiva.

Os critérios para adotar a terapia transfusional são:

  • Piora da frequência e intensidade das crises vaso oclusivas;
  • Síndrome torácica aguda;
  • Queda da hemoglobina basal;
  • Crescimento fetal intrauterino restrito (CIUR);
  • Histórico de complicações pré-existentes (AVC, vasculopatia cerebral);
  • Uso prévio de hidroxiuréia por complicação grave.

Em relação à transfusão profilática, há poucos dados científicos disponíveis e seu uso é controverso, mas já existe uma diretriz da Sociedade Americana de Hematologia (Chout et al, 2020) que recomenda seu uso para mulheres com histórico de complicações graves, com outros riscos gestacionais – como as portadoras de outras comorbidades ou nefropatias – além daquelas que desenvolvem complicações durante a gravidez atual. O Ministério da Saúde do Brasil não adotou essa diretriz até o momento (BRASIL, 2006).

 

Conduta no trabalho de parto e parto

A indicação da via de parto para as gestantes com anemia falciforme é obstétrica. Não há contraindicação para parto vaginal e nem indicação de idade gestacional para interromper a gravidez com boa evolução, desde que não tenha complicações materna e fetais.

Indução de parto ou interrupção da gestação por cesariana seguem os mesmos critérios obstétricos de gestantes sem doença falciforme.

Durante o trabalho de parto a parturiente deve ser mantida bem oxigenada, com saturação de oxigênio maior ou igual a 95%, aquecida (cuidado com a temperatura do ar-condicionado), hidratada, com monitoramento eletrônico contínuo da frequência cardíaca fetal. A analgesia é útil para reduzir as demandas cardíacas maternas secundárias à dor e ansiedade do parto.

Para os casos de cesariana, deve-se cuidar para manter a gestante bem hidratada, com saturação de oxigênio maior que 95% e se possível e necessário, realizar transfusão sanguínea simples, com a finalidade de manter a hemoglobina entre 10 e 11g/dl. Anestesia regional é preferível à anestesia geral e deve-se atentar para equilíbrio hídrico, porque há risco aumentado de retenção hídrica, especialmente entre as mulheres com cardiomiopatia subclínica.

No pós-parto, especialmente em caso de cesariana, é necessária uma vigilância especial aos sintomas de desidratação, infecções e trombose. É recomendada antibioticoprofilaxia conforme o protocolo da instituição, além da manutenção da saturação de oxigênio acima de 95% e estímulo à deambulação precoce.

Abaixo, gravação do Encontro na íntegra.

 

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Perguntas & Respostas

1. O pré-natal e parto da mulher com doença falciforme são considerados de alto risco?

Sim, gravidez e parto de mulheres com doença falciforme são considerados de alto risco e necessitam de acompanhamento de equipe multidisciplinar e especializada.

 

2. Os testes de rastreamento de hemoglobinopatias, realizados no início do pré-natal, são realmente necessários e efetivos? Há estudos sobre a eficácia desses testes?

O rastreamento das hemoglobinopatias é fundamental, uma vez que essas doenças são normalmente subdiagnosticadas. Há pouca evidência disponível em doença falciforme, assim como não há evidências fortes para muitas recomendações. Existem bons estudos sobre o tema, mas muitos esbarram em um número pequeno de pacientes por não ser uma doença tão comum. No entanto, é uma oportunidade importante para fazermos o diagnóstico.

 

3. Existe alguma recomendação pré-concepcional para as mulheres que tem a doença falciforme e querem engravidar?

Sim, é importante o aconselhamento com especialista para informar a mulher sobre o transcorrer de uma gestação com doença falciforme, para que ela tenha ciência da condução que é feita nesses casos e para que possa interromper o uso da hidroxiuréia.

 

4. Quais as possíveis complicações que a doença falciforme pode causar durante o pré-natal, parto e puerpério?

As complicações mais graves são a síndrome torácica aguda, o tromboembolismo, trombose venosa profunda, embolia pulmonar, hipertensão pulmonar, desenvolvimento de pré-eclâmpsia e eclâmpsia, além das complicações relacionadas às transfusões.

 

5. Sobre a via de parto, há alguma recomendação específica?

A principal recomendação é o parto vaginal espontâneo, e dar suporte para que essa mulher entre em trabalho de parto em condições dignas – mantê-la bem hidratada, oxigenada, aquecida, por exemplo. 

 

6. Há risco de parto prematuro?

 Sim, é uma das complicações da gestação com doença falciforme.

 

7. Há algum método não farmacológico de alívio da dor que pode ser empregado durante a gestação na mulher com doença falciforme?

Sim, há uma série de métodos que precisam ser individualizados de acordo com o que a mulher já conhece e utiliza. Normalmente essas mulheres têm um bom conhecimento de quais terapias alternativas funcionam melhor para elas. As mais utilizadas são massagens, bolsas de água quente, controle mental; são várias técnicas que podem ser utilizadas durante o pré-natal.

 

Referências citadas:

  • BRASIL. Ministério da Saúde. Coordenação da Política Nacional de Sangue e Hemoderivados/DAE/SAS/MS. Gestação em Mulheres com Doença Falciforme. 2016.
  • Chou ST, Alsawas M, Fasano RM, Field JJ, Hendrickson JE, Howard J, Kameka M, Kwiatkowski JL, Pirenne F, Shi PA, Stowell SR, Thein SL, Westhoff CM, Wong TE, Akl EA. American Society of Hematology 2020 guidelines for sickle cell disease: transfusion support. Blood Adv. 2020 Jan 28;4(2):327-355.

 

Como citar

FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira. Portal de Boas Práticas em Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente. Postagens: Principais Questões sobre Gestação na Doença Falciforme. Rio de Janeiro, 04 nov. 2022. Disponível em: <https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/atencao-mulher/principais-questoes-sobre-gestacao-na-doenca-falciforme/>.

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