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Principais Questões sobre Sangramento no Primeiro Trimestre

18 set 2024

Sistematizamos as principais questões abordadas no dia 31/03/2022 durante o Encontro com a Especialista Sue Yazaki Sun, médica obstetra, professora da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).

Veja também: Postagem sobre o tema

O diagnóstico e tratamento precisos dos sangramentos do primeiro trimestre da gestação diminuem a morbidade e mortalidade maternas por hemorragias. As principais causas de sangramento do primeiro trimestre são o abortamento espontâneo, a gravidez ectópica e a mola hidatiforme.

A causa mais comum de sangramento no primeiro trimestre é o abortamento espontâneo, ocorrendo em 12 a 24% das gestações. O abortamento precoce refere-se à gestação intrauterina não viável até 12 semanas ou com peso inferior a 500 gramas. Quando ocorre após 12 semanas, é denominado abortamento tardio.

Sangramentos relacionados à abortamento podem ter diferentes manifestações:

  • Ameaça de abortamento: ocorre quando há sangramento, sem perda da gestação. O colo do útero está fechado, e a ultrassonografia mostra uma gestação normal.
  • Abortamento incompleto: envolve aumento progressivo do sangramento e cólicas, com o colo do útero aberto e material na cavidade uterina visível na ultrassonografia.
  • Abortamento retido: é caracterizado por uma gestação não evolutiva, identificada por meio de ultrassonografias realizadas em intervalos. A gestação não apresenta progresso, e o colo do útero permanece fechado.

Outra causa de sangramento no primeiro trimestre é a gravidez ectópica. Nesses casos, ocorre sangramento e o saco gestacional não é encontrado na cavidade uterina. É fundamental a compreensão do cenário clínico:

  • O valor do hCG é um elemento chave, uma vez que o limite discriminatório para a visualização do saco gestacional na ultrassonografia é de 3.500 mUI/mL. Portanto, se o nível de hCG estiver acima desse valor e o saco gestacional não for detectado, deve se considerar a possibilidade de gravidez ectópica ou uma gravidez de localização desconhecida, que corresponde a cerca de 1% de todas as gestações.
  • Os antecedentes que indicam a possibilidade de gravidez ectópica incluem histórico de gravidez ectópica anterior, doença inflamatória pélvica, endometriose e uso de dispositivos intrauterinos (DIUs). Além disso, é importante investigar o uso da pílula do dia seguinte; muitas mulheres podem não mencionar espontaneamente esse aspecto, mas é uma informação com relevância clínica.
  • A resolução da gravidez ectópica pode ser espontânea – nesses casos, pode-se monitorar a queda dos níveis de hCG ao longo do tempo – ou necessitar de intervenção. Nos casos de não visualização do saco gestacional com níveis de hCG aumentando, sugere-se que a gravidez ectópica está progredindo.
  • A localização mais comum da gravidez ectópica é na tuba uterina (trompa de Falópio), representando 90 a 95% dos casos. Outras localizações menos frequentes incluem gravidez ectópica ístmica (na parte estreita da trompa), cicatriz de cesárea e canal cervical. Idealmente, o diagnóstico da gestação tubária deve ser realizado quando a gravidez ainda está intacta.

A terceira causa mais frequente de sangramento no primeiro trimestre é a mola hidatiforme, caracterizada por um erro genético que leva à proliferação anormal do tecido trofoblástico. Isso resulta em níveis elevados de gonadotrofina coriônica humana (hCG), causando sintomas semelhantes à gravidez.

A mola hidatiforme pode parecer uma ameaça de aborto ou um aborto retido, mas a presença de hCG elevado, associada a sintomas atípicos e características ultrassonográficas distintas, ajuda a confirmar o diagnóstico.

 

Diagnóstico diferencial

Ao lidar com sangramento no primeiro trimestre, uma boa avaliação clínica é crucial, incluindo exame especular para excluir causas ginecológicas. Conhecer essas informações e entender as diferenças entre essas condições é fundamental para um diagnóstico e tratamento adequados.

A ultrassonografia pélvica transvaginal pode fornecer informações essenciais, como presença ou não de material na cavidade uterina, vitalidade do embrião e regularidade do saco gestacional.

Essas características indicam diagnósticos de abortamento incompleto, abortamento retido ou, como um diferencial, mola hidatiforme.

  • Quando o HCG está acima de 3.500UI e a cavidade uterina está vazia, o diagnóstico de gravidez ectópica ou gravidez de localização desconhecida deve ser considerado. Se o HCG é menor que 3.500UI, é necessário repetir o teste a cada 48 horas. Em uma gravidez ectópica, o HCG não dobra a cada 48 horas (como na gestação normal), mas tende a aumentar gradualmente.
  • A queda do HCG ao longo do tempo pode indicar uma gravidez ectópica em evolução ou um abortamento em curso. Acompanhar o HCG até que atinja um valor negativo (abaixo de 5.000 mUI/mL) é essencial para o diagnóstico.
  • A análise ultrassonográfica é crucial. O tamanho e as características do saco gestacional, bem como a presença ou ausência de batimento cardíaco fetal, fornecem informações vitais. O tamanho acima de 25 mm ou um embrião com mais de 7 mm sem batimento cardíaco indica uma gestação não evolutiva.
  • O diagnóstico definitivo de gestação evolutiva requer um segundo exame de ultrassom após 7 dias, para confirmação. Em casos de abortamento incompleto, a cavidade uterina contém material não expelido. Uma imagem de saco gestacional próximo ao útero sugere uma possível gravidez ectópica.

Em resumo, a avaliação ultrassonográfica detalhada e a análise dos níveis de hCG desempenham um papel crítico na determinação do diagnóstico adequado para pacientes com sangramento no primeiro trimestre.

 

Seguimento dos casos

No caso de abortamento espontâneo, é importante ressaltar que não há tratamento médico específico. O suporte emocional é fundamental, e medidas como repouso não têm eficácia comprovada. Já no abortamento incompleto, a opção é o esvaziamento uterino, por meio de aspiração manual intrauterina (AMIU, preferencialmente) ou curetagem.

Em casos de aborto retido, orienta-se aguardar a expulsão espontânea em até 4 semanas. Caso isso não aconteça, o tratamento cirúrgico por curetagem uterina ou AMIU pode ser realizado. Antes desse procedimento, a administração de misoprostol 400 microgramas via vaginal três horas antes é recomendada.

Nesses casos, é necessário conhecer a tipagem sanguínea ABO e RH. Se a mulher for RH negativo com parceiro RH positivo e Coombs indireto negativo, a imunoglobulina anti-D deve ser administrada para prevenir a isoimunização. Além disso, é importante realizar sorologias para sífilis e HIV, e todo o material de curetagem deve ser enviado para exame histopatológico.

Em situações de abortamento espontâneo infectado, é necessário instituir terapia antibiótica imediatamente para evitar complicações.

No caso de gravidez ectópica, o tratamento varia de acordo com a situação. Laparotomia é indicada em casos de abdome agudo hemorrágico, enquanto laparoscopia é preferencial em situações menos críticas. Em determinadas situações, o tratamento pode ser expectante, especialmente se os títulos de hCG apresentam declínio em um intervalo de 24 a 48 horas.

Para o tratamento cirúrgico, não deve haver embrião vivo e a massa anexial deve ter dimensões inferiores a cinco centímetros. Algumas mulheres podem ser elegíveis para o tratamento medicamentoso, em detrimento do tratamento cirúrgico. Nesses casos, é necessário que a mulher esteja hemodinamicamente estável, com massa anexial inferior a três centímetros e HCG inicial menor que 5000UI; não deve apresentar dor abdominal e deve ter o desejo de uma gravidez futura, já que o tratamento medicamentoso visa preservar a tuba uterina. Isso é particularmente relevante para mulheres que já tenham perdido uma tuba devido a uma gravidez ectópica anterior.

O tratamento medicamentoso requer acompanhamento próximo e vigilância constante, até que a normalização do HCG seja alcançada. Durante esse processo, a ruptura da gravidez também pode ocorrer, portanto, a mulher deve ser orientada sobre os riscos e assinar um termo de consentimento para esse tratamento.

No contexto da mola hidatiforme, informações mais detalhadas podem ser encontradas no manual da Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO, 2021). Algumas considerações sobre seu tratamento:

  • Para o esvaziamento da cavidade uterina, exames pré-operatórios devem incluir hemograma, HCG quantitativo e tipagem sanguínea. Caso o útero apresente tamanho acima de 16 cm, uma avaliação da extensão da doença é necessária. Se a mulher apresentar sinais de pré-eclâmpsia, exames para avaliar a função renal e hepática também devem ser realizados. No caso de hipertireoidismo, o tratamento com propranolol deve ser iniciado antes do esvaziamento.
  • O esvaziamento uterino é preferencialmente realizado por aspiração, usando uma cânula, com uso de ocitocina para facilitar o procedimento. A escolha entre a aspiração direta e a aspiração com histerômetro depende das circunstâncias e medidas do útero.
  • A ultrassonografia é útil para guiar o procedimento e evitar perfurações. Em mulheres com útero maior que 20 centímetros, a histerectomia abdominal pode ser considerada, especialmente se acima de 40 anos com prole constituída. Essa abordagem reduz o risco de mola invasiva, mas não elimina completamente o risco de complicações.
  • O diagnóstico de mola é retroativo, obtido através do exame anatomopatológico. Nos casos de abortos retidos, é preferível esforçar-se para enviar a amostra para exame anatomopatológico, mas caso isso não seja viável, realizar um teste de gravidez 30 dias após o aborto. O resultado deve ser negativo após 30 dias; em não sendo, o acompanhamento deve continuar até que o resultado se torne negativo. Se uma mulher é suspeita de ter uma mola, é aconselhável que inicie o acompanhamento pós-molar na semana seguinte, com medidas seriadas do HCG. A contracepção deve ser iniciada imediatamente, sem necessidade de esperar pela próxima menstruação, e o atendimento pode começar na alta hospitalar.
  • É fundamental que a mulher seja encaminhada para um centro de referência, tanto no caso de atendimento hospitalar quanto na atenção primária, a fim de garantir um diagnóstico e tratamento adequados o mais rápido possível. É importante ressaltar que o diagnóstico pós-molar é aplicado tanto para molas completas quanto para parciais. Durante o acompanhamento, quantificações semanais do HCG são realizadas. A mulher pode receber alta após seis meses com HCG normal. Caso o HCG não se normalize em três semanas ou haja elevação em duas semanas, o diagnóstico de neoplasia trofoblástica gestacional é estabelecido.
  • Essa mesma abordagem se aplica para as molas parciais, com a diferença de que, após três semanas com HCG normal, um novo exame é realizado em quatro semanas. Se o HCG e o p-57 forem negativos, o tratamento é interrompido após um mês de HCG negativo. Para locais onde o p-57 não está disponível, o acompanhamento pode ser continuado por cinco meses, considerando como se fosse uma mola completa, devido ao risco potencial de malignização. Esta abordagem é aplicada tanto para molas completas quanto para parciais.

Em resumo, quando uma mulher tem um sangramento e a cavidade uterina aparece vazia na ultrassonografia, é fundamental realizar o HCG quantitativo para determinar o diagnóstico diferencial. Caso a cavidade uterina esteja preenchida, é crucial interpretar as imagens conjuntamente com o quadro clínico para efetuar o diagnóstico adequado e estabelecer o tratamento correto. Desta forma, a mortalidade materna associada a esses casos pode ser reduzida.

Abaixo, a gravação do Encontro na íntegra.

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Perguntas & Respostas

 

Como citar

FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira. Portal de Boas Práticas em Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente. Postagens: Principais Questões sobre Sangramento no Primeiro Trimestre. Rio de Janeiro, 17 set. 2024. Disponível em: <https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/atencao-mulher/principais-questoes-sobre-sangramento-no-primeiro-trimestre>.

Tags: Mortalidade Materna, Posts Principais Questões