Principais Questões sobre Cetoacidose Diabética na Infância
10 fev 2022
Sistematizamos as principais questões abordadas durante Encontro com o Especialista Jorge Luiz Luescher, médico pediatra e endocrinologista pediátrico do Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira (IPPMG) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), realizado em 09/03/2021.
A Diabetes Mellitus tipo 1 (DM1) é comum na infância e adolescência: 1,7 casos em cada 1.000 crianças e o Brasil é o terceiro país do mundo em crianças diabéticas tipo 1 menores de 15 anos. Observa-se um aumento da incidência de DM1, em especial em crianças menores de 5 anos.
42,3% das crianças diabéticas apresentam cetoacidose diabética (CAD) ao diagnóstico. Em diabéticos: 1 a 10 eventos CAD/100 pacientes/ano. CAD é a principal causa de morte em menores de 24 anos com DM1 (50%) e pode ocorrer em DM 2. CAD é a maior causa de hospitalização em crianças diabéticas.
Maior risco para cetoacidose diabética:
Na apresentação inicial: menores de 6 anos, baixo nível sócio econômico e países com menor incidência de DM1
Em crianças diabéticas já conhecidas: maior hemoglobina glicada e relato de maior dose requerida de insulina, adolescentes (especialmente as meninas), frágil suporte familiar ou famílias desestruturadas, distúrbios psiquiátricos associados e maior tempo de diabetes. Recorrência: quase 60% dos episódios ocorrem em 5% dos pacientes.
Diagnóstico clínico-laboratorial:história recente de “polis” (poliúria, polidipsia e polifagia) e emagrecimento, desidratação, taquipnéia, alteração da consciência, glicemia > 200 mg/dL, PH < 7,3 e/ou bicarbonato < 15 mEq/L, cetonemia ou cetonúria. Para o diagnóstico, nem sempre todos os critérios são preenchidos.
Classificação da cetoacidose diabética:
Leve: pH maior ou igual a 7,2; bicarbonato de 10 – 15
Moderada: pH entre 7,1 e 7,2; bicarbonato entre 5 – 9
Grave: pH menor que 7,1, bicarbonato menor que 5
É importante que o pediatra que atende na emergência saiba cuidar da cetoacidose diabética, uma vez que muitos hospitais não dispõem de leitos de terapia intensiva para atender estes casos.
Manifestações clínicas: poliúria, polidipsia e polifagia, náusea, vômitos e dor abdominal, desidratação, acidose, hiperventilação, hálito cetônico, alteração do sensório.
Os profissionais de saúde devem lembrar que lactentes tem diabetes tipo 1 e o diagnóstico precoce previne a cetoacidose diabética.
Dificuldades no diagnóstico de lactentes e crianças menores: o profissional não pensar em DM1, sintomas clássicos nem sempre são perceptíveis, uso de fraldas dificulta a percepção da poliúria, dificuldade em perceber a polidipsia e outros sintomas de doenças associadas (principalmente virais). Deve-se também estar atento à severa ou recorrente dermatite de fralda (candidíase) como um possível sinal da DM1.
Diagnóstico diferencial: asma brônquica (principalmente nos lactentes), gastroenterites, infecção do trato urinário, sepse, meningite e abdômen agudo (apendicite, pancreatite). Mais raro: intoxicação por salicilato, estado hiperglicêmico e hiperosmolar e acidose metil-malônica.
A correção da desidratação na cetoacidose diabética deve ser feita com soros com osmolaridade mais alta, a fim de não desbalancear a osmolaridade entre o cérebro e o intravascular (para não causar edema cerebral).
O potássio deve ser dosado rapidamente e recomenda-se a monitorização de crianças com cetoacidose diabética com ECG, principalmente quando o potássio estiver menor que 3 ou maior que 6.
Tratamento: na avaliação inicial, como todo quadro de doença grave, deve-se utilizar:
A (“airway”) – garantir permeabilidade das vias aéreas. Passar sonda nasogástrica (SNG) caso Glasgow ≤ 8 e evitar intubação (risco de edema cerebral);
B (“breathing”) – oxigênio suplementar se inconsciente ou choque;
C (“circulation”) – se hipotenso, etapa rápida (soro em 15 a 30 minutos).
Objetivo inicial do tratamento: expansão intravascular para restaurar a perfusão tecidual.
Objetivo no seguimento: hidratação de manutenção e correção dos déficits hídricos e insulinização para corrigir a hiperglicemia e a cetogênese -> evitar edema cerebral (muito mais frequente em crianças menores que em adolescentes).
A monitorização é essencial no tratamento da CAD: sinais vitais, glicemia capilar, eletrólitos, gasometria, cetonúria (somente para diagnóstico).
Em geral, não se utiliza o bicarbonato no tratamento da CAD. O melhor “tampão” é a hidratação e insulinoterapia.
O edema cerebral ocorre em cerca de 1% dos casos de cetoacidose diabética, com mortalidade de 30% e morbidade de 30% (sequela neurológica: memória e cognição).
Sinais e sintomas do edema cerebral relacionado à CAD: cefaléia (sintoma inicial que se intensifica), vômitos recorrentes, exacerbação da sonolência, irritação, agitação, alteração da consciência e delírio. Os sinais da fase tardia do edema cerebral são: anisocoria e tríade clássica (bradicardia, hipertensão e depressão respiratória). Em geral, ocorre de 3h a 20h após o início do tratamento.
Os hospitais de emergência, as UPAS e unidades que atendem pronto atendimento de crianças e adolescentes devem ter um protocolo para o rápido diagnóstico e tratamento da cetoacidose diabética. Dessa forma consegue-se prevenir a ocorrência de edema cerebral na criança diabética.
Cuidados no manejo da cetoacidose diabética: evitar a hipopotassemia, evitar soro hipoosmolar (menor que 150), não hiper hidratar, não permitir a variação rápida da glicemia, evitar o uso de bicarbonato (risco de edema cerebral).
Prevenção da cetoacidose diabética: maior informação sobre diagnóstico de DM1 na comunidade e maior informação para os profissionais de saúde.
Evitar recorrência da CAD nas crianças já diagnosticadas: mais centros multidisciplinares de atendimento à criança com diabetes, educação continuada em diabetes, orientar a família como agir em possíveis sintomas iniciais e condutas, comunicação com a escola, favorecer o contato fácil da família com a equipe, apoio da equipe de saúde mental para os casos de depressão e transtornos alimentares.
1. Diante do cenário de pandemia do COVID-19, já existe algo que relacione quadro de primodiagnóstico de DM tipo 1, com cetoacidose diabética desencadeada pelo Coronavírus? É recomendado que todos os pacientes, na situação de primodiagnóstico, com sintomas inespecíficos como dor abdominal, náuseas, vômitos, fraqueza muscular, sejam necessariamente isolados e testados para COVID-19?
Ainda não está claro se há relação entre covid-19 e maior incidência de diabetes e estudos estão sendo conduzidos no sentido de identificar estes fatores.
Quanto ao isolamento, não é rotina isolar a criança que apresenta cetoacidose diabética. No entanto, na vigência de um quadro respiratório ou na presença de diarréia, pode-se considerar o isolamento até o resultado do teste diagnóstico.
2. Recomenda-se o uso de manitol ou solução hipertônica para tratar edema cerebral?
As evidências e consensos autorizam o uso de ambos, no entanto a maioria dos serviços costumam recomendar o manitol para o tratamento de edema cerebral relacionado à cetoacidose diabética.
3. É comum cetoacidose diabética desencadeada por Covid-19?
A cetoacidose pode ser desencadeada por viroses e, nesse sentido, é possível. Ainda assim, novos estudos precisam ser conduzidos para avaliar se há associação de Covid-19 desencadear diabetes e de Covid-19 descompensar diabetes. Lembrando que a descompensação da doença é mais comum nos casos onde o paciente não aderem bem ao tratamento.
4. É indicado uso de anticoagulante profilático em adolescentes com cetoacidose diabética, já que a CAD tem uma relação maior com trombose?
O uso de anticoagulante em pacientes com cetoacidose diabética como rotina não é indicado.
5. Qual o esquema inicial de insulina regular e NPH após a criança sair de cetoacidose diabética?
Se a criança já trata a diabetes mellitus, recomenda-se manter ou aumentar a dose da insulina que ela utiliza.
Se a criança ainda não tinha diagnóstico de diabetes, normalmente utiliza-se 0,5/kg de NPH. Pode-se utilizar a dose dividida em 3: ⅓ no café da manhã, ⅓ na almoço e ⅓ na ceia ou ⅔ no café da manhã e ⅓ na ceia.
6. Qual o cálculo de volume após a fase de expansão?
Deve-se considerar a necessidade física diária da criança (cada serviço utiliza uma rotina para cálculo) acrescida das perdas calculadas. A reposição pode ser feita em 24h. Deve-se cuidar para não exagerar no cálculo das perdas (considerar de 5% a 8%). Na segunda fase deve-se cuidar para não exagerar na reposição.
7. Recomenda-se utilizar a cetonemia ou a cetonúria para o diagnóstico?
As duas possibilidades são possíveis para o diagnóstico. Normalmente o aparelho para diagnóstico da cetonemia à beira do leito não está disponível (por ser mais caro), enquanto que o aparelho para cetonúria costuma ser de mais fácil disponibilização.
8. Como as escolas podem trabalhar essas questões? O que deve ser orientado para o cuidado de crianças com diabetes tipo 1?
É fundamental que a escola seja envolvida no cuidado da criança com diabetes tipo 1, uma vez que a criança passa muito tempo lá.
É necessário que haja muito diálogo e compartilhamento de informações. Os profissionais de saúde podem compartilhar informações por escrito sobre o cuidado, inclusive com contato telefônico dos profissionais e do hospital de referência para que a escola possa entrar em contato em caso de dúvidas ou emergências.
O mais importante é que a criança possa continuar o tratamento da diabetes em todos os momentos, inclusive na escola.
Como citar
FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira. Portal de Boas Práticas em Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente. Postagens: Principais Questões sobre Cetoacidose Diabética na Infância. Rio de Janeiro, 10 fev. 2022. Disponível em: <https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/atencao-crianca/principais-questoes-sobre-cetoacidose-diabetica-na-infancia/>.
Usamos cookies para garantir que oferecemos a melhor experiência em nosso site. Se você continuar a usar este site, assumiremos que você está satisfeito com ele.Aceito