Principais Questões sobre Efeitos do Álcool na Gestante, Feto, Recém-nascido e Criança
9 jan 2025
Sistematizamos as principais questões abordadas durante Encontro com os Especialistas Coríntio Mariani Neto, médico obstetra, diretor técnico do Hospital Maternidade Leonor Mendes de Barros (SES/SP), membro da Comissão Nacional de Aleitamento Materno da Febrasgo e membro do Núcleo de Estudos sobre a Síndrome Alcoólica Fetal da Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP); Helenilce de Paula Fiod Costa, médica pediatra, diretora do serviço de neonatologia do Hospital do Servidor do Estado de São Paulo, instrutora do Programa de Reanimação Neonatal da Sociedade Brasileira de Pediatria (PRN/SBP); e Sônia Raquel Wippich Coelho, médica obstetra da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo (SMS/SP), realizado em 22/02/2024.
Hoje, a literatura mundial considera os efeitos da ingestão de álcool no feto, no recém-nascido e na criança, uma epidemia silenciosa. Isso ocorre porque qualquer dose de álcool pode levar à alterações no desenvolvimento fetal.
A Síndrome Alcoólica Fetal (SAF) é uma morbidades totalmente prevenível. A SAF é 100 vezes mais frequente que a fenilcetonúria, testada rotineiramente no exame do pezinho. Entre todas as substâncias de abuso, como cocaína e maconha, o álcool é o agente teratogênico mais comum e a causa mais frequente de déficit cognitivo não congênito e alterações neurocomportamentais na criança.
Os danos da exposição pré-natal ao álcool dependem da dose, idade gestacional, nutrição materna e fatores epigenéticos. Portanto, trata-se de um problema de saúde pública e sua prevenção é essencial.
Estima-se que 2 milhões de pessoas no mundo consomem álcool, correspondendo a 32% da população e estes dados podem estar subnotificados. Estudos mostram que em alguns locais da Europa e no Canadá, o consumo de álcool é mais elevado. Na América do Sul, o Chile lidera o consumo de álcool. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o álcool é responsável por 3,3 milhões de mortes por ano (2014). Dados do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (CISA) indicam que as mulheres estão ingerindo mais bebidas alcoólicas. Este estudo, realizado no período de 2019 a 2023, mostrou um aumento de 15% no consumo de álcool entre mulheres de 18 a 24 anos. Esse aumento também elevou a mortalidade feminina.
Ações importantes do álcool na gestante e suas repercussões no feto:
Ação direta: ainda em estudo, estão sendo encontradas mudanças epigenéticas e químicas no DNA que interrompem o desenvolvimento de células-tronco embrionárias para células diferenciadas.
É comprovado que o acetaldeído altera a função, multiplicação e migração celular, causando morte celular.
Ação indireta: o álcool afeta o apetite da gestante, causa vasoconstrição placentária, crescimento intrauterino restrito e asfixia perinatal.
O álcool/acetaldeído é absorvido pela mucosa gastrointestinal e respiratória, entrando na corrente sanguínea em 60 minutos e no líquido amniótico em 60 a 90 minutos, atingindo a circulação fetal. O líquido amniótico serve como reservatório de acetaldeído, que é metabolizado mais lentamente pelo recém-nascido.
Diante disto, é importante relembrar o desenvolvimento fetal:
Membros inferiores: 4 a 8 semanas;
Genital externa: 7 semanas;
Membros superiores: 4 a 8 semanas;
Olhos: 4 semanas;
Sistema nervoso central: 3 semanas;
Coração: 3 a 6 semanas.
Efeitos da ingestão de álcool de acordo com os períodos gestacionais:
Pré-implantação (fertilização a 4 semanas): ingestão de álcool pode causar abortamento.
Período embrionário (até 8 semanas): alterações na divisão, proliferação, diferenciação e migração celular, resultando em alterações estruturais grosseiras.
Período fetal (9 a 40 semanas): alterações estruturais no sistema nervoso central, malformações cardíacas e renais, e sinais neurocomportamentais sutis.
Prevalência:
Em 2023, a prevalência global dos efeitos do álcool, incluindo a síndrome alcoólica fetal, foi de 7,7 por mil nascidos vivos.
No Ocidente, a prevalência variou de 2 a 7 por mil nascidos vivos (2023).
Nos Estados Unidos, a prevalência da síndrome alcoólica fetal (SAF) é de 9,1 por mil nascidos vivos.
Em 76 países, dados de 2017 mostram uma prevalência superior a 10 por mil nascidos vivos.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) indica 7 por mil nascidos vivos, mas reconhece que esses dados são subestimados.
No Brasil, uma pesquisa realizada em uma maternidade municipal de São Paulo mostrou uma prevalência de 5,52 por mil para a SAF e 38,69 por mil para desordens relacionadas ao álcool.
Para cada criança com a SAF completa, há de 3 a 10 crianças com desordens do sistema nervoso central, crescimento e cognição.
Espectro de Alterações Devidas ao Álcool no Feto
O termo FASD – Fetal alcohol spectrum disorders – Desordens do Espectro Alcoólico Fetal – é um termo abrangente que descreve os efeitos que podem ocorrer em um indivíduo que foi exposto no período pré-natal ao álcool.
Síndrome Alcoólica Fetal (SAF): caracteriza-se por anormalidades faciais, deficiências de crescimento (peso abaixo do percentil 10) e alterações do sistema nervoso central e neurodesenvolvimento.
Síndrome Alcoólica Fetal Parcial: inclui algumas características faciais, distúrbios de crescimento e neurodesenvolvimento ou do comportamento cognitivo.
Alterações do Neurodesenvolvimento Relacionadas ao Álcool: requerem exposição pré-natal ao álcool documentada.
Defeitos Congênitos Relacionados ao Álcool: envolvem malformações cardíacas, esqueléticas, renais, oculares e auditivas, como defeitos do septo atrial e ventricular, sinostose radioulnar, escoliose, rins hipoplásicos, e perda auditiva.
Nota:
A SAF é apenas a ponta do iceberg, com muitas crianças aparentando normalidade, mas sem atingir seu potencial máximo devido a desordens sutis. Pesquisas mostram que 88% dos pediatras suspeitam de alterações relacionadas ao álcool, mas apenas 11% se sentem confiantes para diagnosticar. Além disso, 89% reconhecem a necessidade de educação continuada sobre FASD e conscientização das gestantes.
A partir disso, em 2007, foi criado um grupo de estudos sobre SAF pela Sociedade de Pediatria, para abordar essas questões e aumentar o conhecimento dos pediatras sobre os efeitos do álcool.
Por que o feto sofre mais com os efeitos do álcool?
Isso acontece, pois o nível de álcool no feto é igual ao da mãe, e o líquido amniótico atua como reservatório do acetaldeído, o principal causador de danos. O feto tem um metabolismo e níveis enzimáticos mais baixos, além de órgãos menos desenvolvidos.
Quais são os efeitos do álcool no feto?
Os efeitos do álcool/acetaldeído e ácido acético no feto são:
Vasoconstrição dos vasos placentários e umbilicais;
Interfere na produção de ácido retinóico, levando à alterações faciais;
Aumenta o estresse oxidativo causando lesão e morte celular;
Afeta a transferência de glicose, proteínas e lipídios, resultando em alterações metabólicas e morte neuronal;
Altera a neurogênese e a metilação do DNA
Ações do acetaldeído:
Bloqueia o fator de crescimento epidérmico, alterando a divisão celular e causando crescimento restrito;
O etanol inibe a enzima retinol desidrogenase, diminuindo a produção de ácido retinóico, essencial para a formação de tecidos, órgãos e padrões craniofaciais;
Resulta em características faciais típicas da síndrome alcoólica fetal: fissuras palpebrais curtas, bochechas planas, ausência de filtro nasal, lábio superior fino, nariz curto, queixo pequeno, anomalias nas orelhas e pregas epicânticas.
Alguns dismorfismos faciais: fissuras palpebrais pequenas, filtro nasal esmaecido ou liso e borda vermelha do lábio superior fina.
Outros efeitos do etanol:
Aumento de peptídeos opióides, levando à diminuição da motilidade intestinal;
Reduz o transporte de glicose e aminoácidos, causando alterações no sistema nervoso central e deficiência de crescimento;
Aumenta o cálcio nos neurônios, libera neurotransmissores como o glutamato, resultando em alterações cognitivas e comportamentais.
Possíveis mecanismos de ação do álcool:
Diminuição do fluxo sanguíneo;
Alterações nas mitocôndrias e estresse oxidativo;
Redução dos fatores de crescimento, levando à apoptose e necrose celular;
O acetaldeído e o ácido acético geram radicais livres, provocando morte celular e alterando a regulação e modificando a expressão gênica;
Reduzem a biossíntese do ácido retinóico, responsável pelas características faciais específicas da síndrome alcoólica fetal;
O álcool altera a regulação epigenética e a metilação do DNA, modificando a expressão genética, o que pode ser transmitido por gerações;
Estudos mostram que famílias expostas ao álcool apresentam maior incidência de doenças crônicas como diabetes, aterosclerose e câncer.
Álcool e o cérebro fetal:
O álcool induz alterações inflamatórias no cérebro em desenvolvimento, levando à microcefalia, alterações nos circuitos neurais e na plasticidade cerebral;
No primeiro trimestre, o cérebro se forma anatomicamente. Nos trimestres seguintes, os neurônios amadurecem e estabelecem conexões e mielinização.
Os locais comuns de lesão pelo acetaldeído incluem corpo caloso, cerebelo, gânglios da base, córtex, hipotálamo, tálamo, hipocampo e área septal.
O período de maior risco é da 5ª a 8ª semana de gestação (primeiras semanas), quando muitas mulheres ainda não sabem que estão grávidas. Nos casos em que há o uso excessivo do álcool, há um aumento das lesões celulares, que pode levar à situação de aborto.
O etanol altera a formação dos astrócitos, interrompendo ou alterando a migração dos neurônios. Os neurônios não estão nos seus lugares apropriados e podem levar a alterações estruturais no cérebro, principalmente nos astrócitos, responsáveis pela orientação da migração dos neurônios.
O álcool também pode alterar as células das seguintes estruturas do cérebro:
Corpo caloso: responsável pela conexão dos hemisférios cerebrais, funções motoras e cognitivas; A ausência do corpo caloso em determinadas gestações pode estar associada à hipótese da ingestão de álcool nas primeiras semanas de gestação;
Essas alterações podem resultar em situações de microcefalia.
Mudança no tamanho cerebral: estudos apontam a diminuição do tamanho do cérebro e do cerebelo.
Mecanismos de dano celular:
O acetaldeído bloqueia fatores de crescimento, altera a divisão celular e restringe o crescimento;
Inibe a enzima retinol desidrogenase, diminuindo a produção de ácido retinóico, essencial para a formação de tecidos e órgãos;
Aumenta o cálcio nos neurônios e libera neurotransmissores como o glutamato, causando alterações cognitivas e comportamentais;
Resulta em morte celular por estresse oxidativo, alterações nas mitocôndrias e redução de fatores de crescimento.
Diagnóstico clínico:
O diagnóstico é mais preciso entre 2 e 11 anos;
As características faciais podem estar ausentes;
Geralmente há a presença de:
Defeitos congênitos nos vários órgãos;
Cardiopatia congênita (CIV, CIA, CoA);
Baixo peso ao nascer (PIG);
Hipotonia;
Choro contínuo;
Hiperexcitabilidade;
Tremores grosseiros;
Recusa alimentar;
Dificuldade de vínculo;
Alterações neurocomportamentais podem ser confundidas com TDAH e incluem dificuldades escolares, estrabismo, transtornos psiquiátricos e, na idade adulta, propensão à dependência de drogas e problemas legais;
É essencial que neonatologistas e pediatras considerem a etiologia do álcool ao diagnosticar defeitos congênitos e baixo peso ao nascer. A identificação precoce e a educação contínua são fundamentais para lidar com os impactos do álcool no desenvolvimento fetal.
Características em diferentes idades
Recém–nascido: as características faciais são evidentes, podendo diminuir ao longo do tempo, portanto deve-se delimitar e especificar muito bem cada uma delas. Baixo peso ao nascer. Possíveis sinais incluem microcefalia, dificuldades alimentares, problemas de sono e convulsões. Exames como ultrassom e eletrocardiograma podem revelar anomalias.
Lactentes e Pré-escolares: as características faciais do transtorno fetal alcoólico podem atenuar, mas as alterações no neurodesenvolvimento e sistema nervoso central permanecem evidentes. Sintomas podem incluir retardo mental e de linguagem, birras exageradas, coordenação motora alterada, déficit de atenção, hiperatividade e dificuldades no aprendizado, especialmente em matemática.
Adolescentes: podem apresentar alterações neurocomportamentais, baixo desempenho escolar, baixa autoestima, perda de memória frequente, impulsividade e propensão ao uso de drogas.
Desafios sociais:
Crianças afetadas frequentemente enfrentam dificuldades de inserção social devido às suas limitações comportamentais e cognitivas.
Diagnóstico e prevenção
Idealmente, a prevenção começa antes da gravidez, com a conscientização sobre os riscos do consumo de álcool durante o período gestacional. Na prática, a prevenção deve iniciar no pré-natal, com os profissionais de saúde questionando e esclarecendo as gestantes sobre os riscos. Além disso, a implementação de questionários sobre o consumo de álcool na primeira consulta pré-natal e durante a fase de planejamento da gravidez, torna-se importante para detecção e prevenção.
Dificuldades diagnósticas:
O diagnóstico clínico é desafiador e os marcadores tradicionais, como testes de mecônio, cabelo e cordão umbilical, não são amplamente utilizados no dia a dia. O teste de mecônio pode indicar uma prevalência de exposição ao álcool quatro vezes maior do que os relatos maternos sugerem, mas ainda há incertezas sobre a precisão desses testes.
Consumo de álcool e amamentação:
A Academia Americana de Pediatria não recomenda a abstinência total de álcool para todas as mães que amamentam. Entretanto, a Sociedade Brasileira de Pediatria recomenda que os lactantes não consumam álcool. Isso porque o álcool pode reduzir a produção de leite, afetar o ganho de peso do bebê, alterar a duração do sono do recém-nascido e causar tremores e potencial dependência futura. O tempo necessário para o álcool ser eliminado do leite materno é também um ponto de debate.
Intervenções pertinentes ao âmbito das autoridades de saúde:
Para abordar este problema, as autoridades de saúde devem:
Compreender e dimensionar o problema;
Educar os profissionais de saúde;
Elaborar legislações proativas pertinentes: intervenções em preços e impostos de bebidas alcoólicas e regulação do marketing de bebidas;
Divulgar os efeitos nocivos do álcool para a comunidade;
Oferecer suporte às famílias afetadas, através da atuação das equipes de saúde;
Reforçar estratégias para ampliar o planejamento familiar nas unidades de saúde.
Intervenções pertinentes ao âmbito parental e comunitário:
As ações incluem:
Reuniões com autoridades de saúde para discutir o problema;
Orientação a jovens em idade reprodutiva sobre os riscos do consumo de álcool;
Intervenção terapêutica para melhorar a interação entre pais e filhos afetados com FDASD, com o intuito de diminuir o estresse parental e melhorar os cuidados em relação a eles;
Apoio psicológico contínuo para cuidadores.
Intervenções pertinentes ao âmbito da equipe de saúde:
Capacitação para o reconhecimento precoce da FASD e receber orientação precoce para desenvolver o tratamento de suporte;
Técnicas de intervenção, incluindo sessões recorrentes individualizadas, atividades em pequenos grupos, jogos objetivando melhoria das habilidades sociais da criança, seu desempenho em matemática e leitura, além de desenvolver conhecimentos relativos à segurança pessoal, por exemplo, em relação ao fogo;
Trabalho multidisciplinar junto às comunidades, para divulgar conhecimentos sobre FASD, por meio de visitas domiciliares de crianças diagnosticadas com o problema, avaliando a estrutura familiar e encaminhando para tratamento específico as mães (prioritariamente) e familiares de crianças afetadas.
Divulgar informações sobre a Síndrome Alcoólica Fetal (SAF) através de visitas domiciliares, principalmente para famílias com crianças diagnosticadas. Anualmente, mais de um milhão de crianças nascem com lesões cerebrais permanentes causadas por fatores preveníveis, exigindo uma resposta imediata e eficaz.
Abaixo, segue a gravação do Encontro na íntegra.
Como citar
FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira. Portal de Boas Práticas em Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente. Postagens: Principais Questões sobre Efeitos do Álcool na Gestante, Feto, Recém-nascido e Criança. Rio de Janeiro, 9 jan. 2025. Disponível em: <https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/atencao-recem-nascido/principais-questoes-sobre-efeitos-do-alcool-na-gestante-feto-recem-nascido-e-crianca/>.
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