Sistematizamos as principais questões abordadas no dia 25/06/2020 durante o Encontro com as Especialistas Aline Brilhante, médica obstetra, professora da Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Corina Mendes e Suely Deslandes, pesquisadoras do IFF/Fiocruz.
É fundamental que os trabalhadores da saúde saibam como agir e estejam preparados diante da tomada de decisões no cuidado às mulheres em situação de violência. O acolhimento, atendimento, notificação, registro, acompanhamento e encaminhamento articulado intersetorial são etapas do caminho que deve ser trilhado, para que não sejam parte de ações ou de omissões que violem direitos, incrementando, banalizando e naturalizando a violência baseada em gênero contra mulheres.
O profissional de saúde deve ser capacitado e habilitado para identificar esses casos e para prestar assistência. Existem evidências de que mulheres em situação de violência apresentam seu problema para um profissional de saúde 35 vezes mais do que apresenta para a Secretaria de Segurança Pública.
Abaixo, gravação na íntegra.
Perguntas & Respostas
1. Existe algum estudo ou documento recente sobre violência sexual em época de pandemia?
Os estudos sobre desastres naturais, onde também ocorre isolamento social, mostram essa correlação. Há estudos que apontam estimativas de aumento de violência sexual e também do aumento do consumo por internet, pelas relações digitais, pornografia e pornografia infanto-juvenil, alimentando as redes da exploração sexual de meninas e mulheres, nestes períodos. Com isso, o número de casos de crimes digitais, não apenas da pornografia, aumentou, devido o aumento da exposição à internet. Os adolescentes, principalmente, ficam mais tempo na internet e assim mais expostos aos criminosos digitais em período de pandemia.
Há um volume de produção internacional orientando como conduzir os casos em situações de isolamento e pandemia. Mas é necessário lembrar que temos um acervo de políticas públicas que foram construídas ao longo das últimas décadas, que podem nos sustentam em um momento como esse. Com elas é possível propor estratégias para uma situação de urgência e emergência, como vivida durante a pandemia.
A violência contra as mulheres se configura como uma questão de todos, porque ela não acontece com alguém que está distante de você ou da sua família, ela acontece de forma cotidiana, muito próxima de cada um, com repercussões e consequências geracionais, econômicas e de impacto nos serviços de saúde. Já existem muitos estudos sobre isso e é preciso que cotidianamente nos voltemos às essas questões.
É preciso ressaltar que as políticas são sólidas, mas elas precisam sair do papel. Elas são um patrimônio da saúde pública brasileira, foram produzidos através de processos democráticos consensuados e devem ser respeitadas pelos grupos gestores. São necessárias estratégias de proteção dessas políticas para que elas possam realmente se manterem vivas e nos orientando.
Talvez o maior desafio da pandemia e da pós pandemia é a defesa do que já foi conquistado em termos de normas técnicas, de compreensão dos direitos, dos diálogos com os movimentos sociais, etc. Temos um conjunto, um legado de políticas públicas e de um saber técnico político de gestão de serviços e de produção, de acolhimento e de suporte, que não foi construído de uma hora para outra. Pelo contrário, foram décadas desde a redemocratização brasileira, desde a década de 80, que se vive esse percurso de construção.
Pensar na retaguarda de serviços para assistência é fundamental na execução, implantação e consolidação das políticas de proteção às mulheres. Sem essa retaguarda de serviços não adianta ter um corolário técnico e um arsenal de políticas progressistas que retratam o respeito ao direito das mulheres e o enfrentamento da violência de gênero.
2. Caso a mulher não queira fazer uma denúncia contra o seu companheiro, o que pode ser feito? O que cabe aos profissionais?
Não se pode vincular a assistência à denúncia. Cabe aos profissionais acolher a mulher e conhecer as suas redes locais de assistência para poderem orientá-la no percurso dentro dessa rede de assistência. A denúncia não é obrigatória e é preciso que os profissionais respeitem a autonomia da mulher em relação à isso. Para que ela faça a denúncia, ela precisa se sentir segura. Vale lembrar que os profissionais tem o dever de sigilo e confidencialidade sobre as informações e à relação com o usuário que está atendendo e acompanhando.
Os profissionais devem avaliar questões como a necessidade da mulher sair da sua casa, do local onde sofre violência, e ir para uma casa abrigo, por exemplo. Além de outras medidas para dar apoio, como suporte psicológico, e quais caminhos dentro da Rede para que se consiga garantir isso. O serviço social é importantíssimo dentro das instituições para ajudar nesse percurso de assistência.
Caso a mulher queira fazer a denúncia, os profissionais devem orientá-la, mas antes de tudo, deve-se respeitar sua autonomia e seu tempo. Não é fácil fazer a denúncia por uma série de questões, tanto emocionais e subjetivas quanto por questões de segurança. Muitas mulheres tem receio de fazer a denúncia antes de se sentirem totalmente protegidas. Mais da metade das mulheres assassinadas no Brasil são assassinadas por cônjuge, ex-cônjuge, namorado ou ex-namorado. Então esse medo não é irracional e deve ser visto como parte de um processo.
É importante lembrar que a notificação compulsória dos casos de violência não se caracteriza como uma denúncia. Ela tem um papel fundamental para a proteção, planejamento das ações das políticas e análise epidemiológica.
A mulher precisa de apoio, de suporte e orientação dos seus direitos. Mas ela tem autonomia. Essa é uma discussão delicada e que merece toda atenção dos profissionais, até porque muito provavelmente essa mulher está no ciclo crônico de violência com seu parceiro. Talvez ela precise de elementos subjetivos e materiais concretos para fazer uma ruptura dessa relação. É exatamente no processo de superação dessa situação que os profissionais de saúde são convocados a atuar. Isso não é um momento único, é um processo que ali se estabelece.
3. Como os profissionais de saúde da ponta podem ajudar na identificação nos casos de violência contra mulher?
Os profissionais devem ter sensibilidade, escuta ampliada pelo exercício da empatia, solidariedade e atenção à história que a mulher conta, com atenção aos sinais que ela produz nessas comunicações.
Uma vez identificado a suspeita de violência o profissional de saúde pode, obviamente respeitando o momento de segurança para a mulher, perguntar sem expô-la à riscos. Há situações em que pode-se perguntar de uma maneira mais direta se há algum problema, se ela se sente insegura no seu relacionamento, se ela já sofreu alguma ameaça ou alguma agressão, se tem alguém da rede de familiares e amigos ciente da situação e se ela tem algum lugar seguro em caso de emergência. è importante falar com ela sobre as redes de proteção. O mais importante é tentar identificar esses casos, prestar o acolhimento e fazer com que ela entenda que no serviço e no profissional ela terá apoio. Sozinho o profissional não consegue resolver toda a situação. É preciso ter redes bem consolidadas para essa assistência.
Vale lembrar que parte das mulheres em assistência com transtornos mentais como transtornos depressivos e/ou de ansiedade, podem ter histórico de violência. O mesmo vale para mulheres com disfunções sexuais. Dependendo do problema que se está assistindo, é preciso investigar as questões de violência mais a fundo.
4. Como o Brasil pode sair desse lugar, de um dos países com maior número de casos de violência contra mulher? Onde estamos errando?
Não existe uma receita. Os protocolos e as normas são fundamentais. E o investimento na formação continuada de profissionais, com a construção de espaços de compartilhamento das tomadas de decisão, também são muito importantes.
Substituindo a expressão que “estamos errando” por “onde perdemos oportunidades”. Essa é uma questão essencial e estratégica. Quando se fala de violência contra as mulheres, a gente está falando de mulheres e meninas. Deve-se fazer um investimento maciço em uma educação por equidade e igualdade de gênero. Quando se fala em educação não é só o sistema formal de ensino, mas também a educação social para valorização da autoestima das meninas e mulheres, para sua escolarização, para o reconhecimento delas como sujeitos de direitos. Enquanto não se enfrentar essa etapa de missão civilizatória, não será possível superar a violência de gênero e violência contra mulher. Ainda há muita coisa por fazer nesse sentido, com muitas instituições, como família, escolas e a saúde nessa perspectiva de uma educação de gênero, pró equidade de direitos.
Olhando para a realidade do serviço, há muitos serviços em que o profissional se sente mais sozinho, onde não há apoio para fazer um trabalho dessa natureza. É é necessário buscar parcerias, pois ele também precisa de ajuda e de ser ouvido. A saúde precisa de boas parcerias com a assistente social, com a educação, com serviços de segurança pública, etc. Essas parcerias são fundamentais para a diminuição dos casos de violência que caracterizam o Brasil: a cada duas horas uma mulher é assassinada devido a sua condição de gênero. Esse não é um enfrentamento que se faz pontualmente ou sozinho, por mais que o sujeito seja bem intencionado.
5. Na medida em que houve um registro por telefone maior que o presencial, como podemos usar essa via como forma de ampliar o acesso das mulheres à orientação para o manejo da violência?
Em alguns países houve uma resposta célere dos governos, como no caso da Espanha e do Reino Unido, em que se observou aumento dos serviços de hotline já existentes.
No Brasil observou-se alguns aplicativos serem disseminados no período da pandemia, mas sem uma ação integrada para além do já existente (disque 180). Há Estados que criaram aplicativos, outros criaram serviços de apoio telefônico, mas sem que houvesse um planejamento, uma articulação e organização detalhada, ainda que a pandemia tenha chegado aqui três meses depois dos primeiros casos.
6. Como conseguir incentivos do Estado e para que os Municípios implantem políticas de saúde para melhor acolher a mulher vítima de violência?
Na dimensão dos serviços e da governança dos profissionais, há que se pensar no que se pode fazer com parceiras no próprio território e identificar quem são esses pares, dentro da unidade e no território.
É essencial que as pessoas se reúnam e que não seja uma experiência solitária, que se organizem reuniões para discutir os casos e partilhar as experiências diante das situações de atendimento às vítimas de violência. É preciso se reunir, conversar, fazer um plano de ação, de atendimento, de acompanhamento. É esse trabalho de formiguinha que faz a diferença.
É importante que os serviços se organizem e construam um processo, um fluxo para o encaminhamento dessas pacientes: para quem identificar o caso, como que será a sequência da assistência, etc. Quando se tem os processos bem definidos é mais fácil pois se ganha um caráter institucional e a assistência não depende de um profissional específico. Por isso também é importante envolver a gestão, dialogando com os outros equipamentos de proteção do Estado, que existem em cada local. Assim é possível dar visibilidade institucional ao trabalho que está sendo desenvolvido.
A outra questão é como se pode conseguir mais recursos. Isso é muito difícil, pois não depende dos profissionais ou do próprio hospital. Ainda assim, o preenchimento da notificação dos casos é fundamental. A partir desses números se consegue apontar se são muitos casos atendidos e se há necessidade de mais recurso financeiro. Os números dão uma materialidade para a argumentação em prol de recursos. O que não se pode é esperar esses recursos para começar a organizar o serviço.
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