Sistematizamos as principais questões abordadas durante Encontro com o Especialista Sérgio Marba, professor titular e neonatologista da Unicamp, realizado em 06/12/2018, com o tema Aguardando o transporte do recém-nascido.
O ideal é que o nascimento de uma criança de risco aconteça em locais com a estrutura adequada para o seu imediato atendimento e, para isso, é necessário que o pré-natal permita a previsibilidade deste risco de forma que se tenha tempo de realizar o transporte da mãe com o feto no ambiente intrauterino para unidades de maior complexidade.
Contudo, não é incomum que o nascimento de um recém-nascido pré-termo ou com outros agravos à sua saúde ocorra em uma unidade que não possui a estrutura adequada ao seu atendimento, sendo necessário realizar o transporte desta criança.
Sempre existirá uma lacuna de tempo entre a solicitação e a realização do transporte e neste período inúmeros cuidados assistenciais podem ser prestados pela unidade solicitante antes da chegada da equipe responsável pela remoção, mesmo que em condições não totalmente ideais, visando trazer benefícios a este recém-nascido, tais como, a redução da morbimortalidade e melhores desfechos.
É um desafio manter o treinamento e capacitação de equipes em unidades de baixa complexidade que eventualmente admitem um recém-nascido de risco, ainda que em casos de exceção. Entretanto, esta é uma situação real e os gestores destas unidades devem planejar a inclusão de treinamentos, tais como o curso de reanimação neonatal, curso de transporte neonatal e cuidados pós-reanimação neonatal, todos oferecidos pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) em seus programas de educação continuada.
Outras alternativas de suporte às unidades de baixa complexidade, que se veem nesta situação, seria estabelecer alguma forma de contato com centrais de regulação ou recursos de telemedicina, onde elas recebessem orientações até a realização do transporte.
Abaixo a gravação do Encontro na íntegra.
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1) Como transportar o RN de baixo risco em ambiente intra-hospitalar? O que é recomendado?
Na verdade, este é outro assunto, não é exatamente o nosso tema de hoje, mas considero bem importante discutirmos sobre isso.
O transporte neonatal possui duas características: o transporte entre hospitais (nesse caso a criança grave que está em um local que não possui a atenção adequada para ela) e o transporte dentro do próprio hospital (para a realização de exames e de cirurgias).
Este segundo tipo de transporte, objeto da pergunta, também é um transporte que pode levar à consequências graves se não tomarmos as devidas precauções.
Outro conceito importante que foi colocado é a questão do baixo risco, e nós estamos falando, nesse momento, de crianças de alto risco que estão numa unidade de menor complexidade e que necessitam de um local com maior complexidade. O que a questão traz é uma criança de baixo risco que será transportada dentro do próprio hospital e neste caso esse transporte poderá ser feito numa incubadora de transporte, com todos os cuidados necessários, ou estando a mãe presente, preconizando a importância dos pais dentro da unidade neonatal, a criança pode ser transportada na posição canguru, também com todos os conceitos de segurança para o binômio mãe/filho. Veja bem, o transporte neonatal que nós formatamos na Sociedade Brasileira de Pediatria e no Ministério da Saúde, fala especificamente do recém-nascido de alto risco transportado em incubadora apropriada e com todos os recursos necessários. Existem publicações internacionais mostrando o transporte utilizando a posição canguru, mesmo entre hospitais. Contudo, esta ainda é uma situação que não podemos preconizar de maneira sistemática, até porque, no Brasil, existe lei do CONTRAN (Conselho Nacional de Trânsito) que diz que a criança não pode ser transportada em veículos fora dos dispositivos de segurança. Então, acredito que isso seja possível, que precisamos avançar, mas temos que, antes de mais nada, respeitar a nossa legislação.
Para uma criança grave, instável, não haveria uma indicação de transporte na posição canguru porque ela precisa de outros cuidados difíceis de serem aplicados nessa condição. Assim, esses trabalhos sobre transportes em posição canguru envolve muito as situações de baixo risco.
Voltando ao transporte intra-hospitalar, se você tem a mãe disponível, é possível fazer o transporte no colo da mãe, mas é importantíssimo frisar a necessidade dessa criança estar bem fixada na mãe, usando a faixa e todos os mecanismos de segurança. Não pode ser simplesmente a criança no colo e mal posicionada, mas sim com todo o cuidado que se preconiza no método canguru para fazer o transporte dentro do próprio hospital. Tenho recebido muitas fotos de pessoas que realizam isso e não acho que esteja errado, mas quero deixar bem clara a questão da segurança. Existe a opção do uso do top de malha e ele precisa ser utilizado com bastante critério.
2) Quais os prejuízos acarretados hemodinamicamente durante o transporte do recém-nascido? Geralmente, sempre há uma descompensação clínica, por quê?
São descritos vários efeitos físicos durante o transporte. A criança vai passar por vibração, por ruído, por manipulação. Há vários trabalhos que mostram os diversos tipos de aceleração e desaceleração, a força centrífuga numa curva, a subida e descida, e toda essa movimentação para uma criança que está instável pode ser prejudicial. É a mesma situação de você estar numa UTI, manipulando a criança de maneira não adequada, a criança também vai descompensar. Assim, há uma preocupação no transporte para que essas situações sejam vistas (o ruído, a aerodinâmica da incubadora, etc.).
Existem mecanismos sofisticados para manter a criança bem acomodada, mas podemos, baseados no método canguru, colocá-la dentro de um ninho que permita que ela fique mais acomodada. Porém, é preciso certificar alguns critérios; se essa criança for muito grande, por exemplo, o ninho talvez não seja adequado porque pode esquentá-la demais. Cuidado ao se colocar o ninho não tirar a visibilidade importante para a observação clínica da criança. Então tudo isso precisa ser avaliado, mas são medidas interessantes. Todas as incubadoras de transporte possuem faixas para fixar a criança e isso precisa ser utilizado. É importante também a fixação correta da incubadora no veículo. Este fato aliado à criança bem fixa, você minimiza esses efeitos físicos do transporte e realiza a transferência com segurança.
3) Onde o RN deve ficar enquanto a equipe espera a transferência?
A criança pode estar no centro obstétrico, ao acabar de nascer, ou pode já estar na UTI neonatal, ou mesmo na unidade de cuidado intermediário. É importante que ela fique no melhor local onde possa receber os cuidados até o transporte chegar. Não existe um local ideal. É importante pensarmos nos 5 pilares após o nascimento para saber o que é importante para a criança ou seja conhecer o “ABCDE”*¹ da pós-reanimação que se aplica também a este caso: cuidar das vias aéreas, da respiração, da circulação, da questão neurológica, da temperatura ou algum tipo de lesão que possa existir. Então, se você percorrer esse caminho, irá manter a criança com uma via aérea pérvia, com o melhor suporte respiratório que você tenha no local, a melhor capacidade circulatória, avaliar a condição neurológica e cuidar da sua temperatura. O fato de a criança precisar ser transportada não exime a equipe que a estiver acompanhando de realizar esses cuidados. Não será o mesmo cuidado que o transporte realizará ao chegar, mas existem questões básicas que não são difíceis de realizar até que o transporte chegue e que podem mudar os resultados finais.
4) Trabalho em maternidade de baixo risco e sempre que nasce um prematuro a transferência demora, a equipe fica muito estressada vendo a piora do RN. O que podemos fazer?
Por que essa criança está piorando? Obviamente porque ela não está recebendo aquele suporte que precisa. Quero frisar novamente a importância de nos questionarmos: será que estamos fazendo o necessário para essa criança não piorar dessa maneira? Vamos analisar por exemplo um ponto importante que é a temperatura. Às vezes a criança está piorando simplesmente porque está hipotérmica. Então, o primeiro passo, para quem estiver cuidando da criança, enquanto o transporte não chega, é monitorar essa criança. Verificar se a criança está normotérmica ou hipotérmica. Normalmente essas crianças fazem hipotermia e isso agrava muito o seu estado clínico. Nós sabemos que a cada grau que a temperatura da criança diminui, aumenta em 28% a chance dela evoluir para óbito. Assim, quem estiver cuidando dessa criança precisa realizar ações como, por exemplo, colocar touca na criança. Lembrar sempre que, se for prematuro, pode-se colocar uma touca de plástico na cabeça e, por cima desta, colocar uma touca de algodão ou de lã. A superfície corpórea da cabeça da criança é muito grande. Também é importante colocar luvas na criança, colocá-la dentro de um saco plástico (não precisa ser um saco plástico estéril, basta ser limpo e transparente para que se possa observar a criança). Essa é uma das maneiras mais eficazes de se manter a temperatura. Medir a temperatura é algo fundamental e a colocação do saco plástico é preconizada para crianças menores de 34 semanas de idade gestacional. Se existe uma incubadora no local, ou um berço aquecido, vamos manter a criança lá; também podemos colocar algum tipo de aquecedor próximo a ela (somente contraindicamos que se use bolsa de água quente ou algo semelhante que possa queimar a criança). Tudo o que é feito de maneira responsável, visando à melhoria da temperatura, é importante. É natural que haja estresse nesse momento, mas isso pode ser minimizado com treinamentos. Se a equipe estiver treinada para essa eventualidade, focada em monitorar a temperatura, e a criança ficar normotérmica e mais estável, isso diminui o estresse. Esse é apenas um exemplo de atuação que pode mudar o prognóstico da criança.
5) Sabemos que o melhor é transferir a mãe. Contudo, o nascimento muitas vezes é inevitável. Por que e quando o transporte neonatal pode aumentar o risco para o recém-nascido?
Todos os fatores físicos já mencionados (ruído, vibração, movimentação, aceleração, desaceleração, etc.) podem piorar o estado clínico da criança. Nesse transporte, se você não tomar cuidado, a criança pode ficar hipotérmica e isso é um grande problema, como já dissemos. Se imaginarmos uma criança que esteja intubada, com esses problemas físicos pode ocorrer a extubação no meio do caminho, e isso é uma situação grave. Assim, todos esses mecanismos de alteração, em que a criança está num ambiente completamente não programado para ela, podem, obviamente, levar a um agravo importante para ela. Os estudos mostram que, quando você compara a população tratada diretamente nas unidades e a que foi transferida, sempre há uma maior incidência de complicações com esta última.
6) Quais cuidados com o recém-nascido que aguarda um transporte vocês consideram como primordiais?
Novamente, é o “ABCDE” do transporte.
A – Vias aéreas pérvias:
B – Breathing/respiração:
C – A circulação:
D – Disability/incapacidade: avaliar as condições neurológicas da criança.
E – Exposure/exposição: cuidados com a temperatura da criança, prevenindo a hipotermia, conforme já abordamos.
Se existe o treinamento da equipe ela sempre estará apta a realizar o atendimento de urgência até que o transporte chegue.
7) Vejo que, muitas vezes, as equipes que realizam o transporte não são especializadas no atendimento neonatal, o que muito me preocupa. Não seria mais racional que se investisse em um programa de transporte neonatal seguro?
Estou absolutamente de acordo com você. Tenho trabalhado, nos últimos anos, como consultor do MS, e estamos querendo normatizar o transporte neonatal no Brasil. Como disse, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) já possui esse programa e estamos tentando fazer uma parceria do MS para a questão do transporte, do mesmo modo em que foi feito para a reanimação. Hoje existe a Portaria 371/2014 da SAS/MS que determina que todo nascimento deve ser acompanhado por um profissional de saúde capacitado para realizar os primeiros passos da reanimação e o curso que se preconiza nesta portaria é o da SBP. Então, estamos querendo fazer o mesmo, utilizando o transporte como uma normativa.
Um conceito bem importante para isso é formar grupos de transporte ou contratar uma empresa cujo pessoal tenha recebido o treinamento, tenham feito o curso. No processo licitatório para contratação de serviços de transporte neonatal, precisamos observar e definir as regras e uma delas pode ser a exigência dessa capacitação. No entanto para exigir a capacitação, a mesma precisa estar preconizada pelo MS e isso não é tão simples assim.
Outra situação seria você ter centrais de transporte, ou seja, estados e municípios possuírem pessoas que estejam treinadas para isso, como o SAMU. O problema do SAMU é foi construído numa base para buscar alguém que esteja na rua e levar para o hospital, e não tem na sua missão fazer o transporte entre hospitais, ainda que ele faça. Então, para que o SAMU realize o transporte neonatal inter-hospitalar, a mudança de sua missão precisaria ocorrer em nível governamental. Como o transporte neonatal, teoricamente, deveria ser algo de exceção, você não consegue manter essas equipes treinadas de maneira adequada. E então temos que prever estes treinamentos cíclicos através de um programa de educação continuada. Existem outros modelos de transporte. Por exemplo, no Canadá, o responsável pelo transporte é o hospital que vai receber a criança. Então os hospitais de atendimento terciário possuem uma equipe de transporte, escaladas, treinadas para buscar a criança. Estas estratégias evitariam o que foi colocado nesta questão: pessoas que transportam um recém-nascido sem a menor noção do que consiste é um recém-nascido e que se dizem habilitadas para o transporte. Isso acontece porque não existe uma legislação nem para você contratar uma empresa e nem para profissionais trabalharem nestas empresas.
O MS está se esforçando e discutindo continuamente sobre a necessidade dessa regulamentação. O Brasil necessita regulamentar o transporte neonatal, mas, como ele é algo que deveria ser de exceção, acaba não recebendo tanto investimento. Contudo, no Brasil, ao contrário, ele é muito frequente e, mesmo que fosse infrequente, uma hora ele acontece e, nessa hora, preciso ter a equipe treinada.
8) Nas maternidades que não tem uma unidade neonatal, qual o melhor lugar para deixar este bebê aguardando o transporte?
Deixar a criança no local em que ela já se encontra para que possa receber os cuidados necessários até a chegada do transporte. Acho que essa pergunta já foi respondida anteriormente.
9) Qual seriam suas orientações para a organização (gestão e assistência) destes locais para melhor atuarem nestes momentos?
Depende do modelo que for aplicado: o modelo de uma central de transporte neonatal, como o que acontece na França, ou o modelo Canadense, que já comentamos, onde quem faz o transporte é uma equipe do hospital que vai receber o bebe de risco. Agora, independentemente do modelo, o que existe em comum entre eles é a capacitação e a recapacitação das equipes através da realização cíclica de cursos de capacitação ou oficinas de simulação. E isso não é difícil de ser realizado, bastando haver estruturação e organização para que se possa dar o melhor cuidado para as crianças. As ações executadas em um transporte são básicas e as equipes multiprofissionais das unidades (médicos, enfermeiras e fisioterapeutas) tem toda a capacidade de receberem o treinamento e realizarem um transporte de maneira adequada.
10) Quais os cuidados com o transporte de RNs com malformações como mielomeningocele e gastrosquise?
Existe o Manual do Transporte do Recém-Nascido de Alto Risco, da SBP, que traz na sua parte final as indicações dessas doenças mais específicas. Um conceito que a gente usa muito nas capacitações é utilizar um pouco a experiência do local. Assim, como você aborda a gastrosquise ou a mielomeningocele no seu hospital? Existem diferentes abordagens, e a gente não entra muito no detalhamento de como fazer, respeitando a experiência que aquele local possui. Quando a gente realiza um treinamento de transporte, basicamente utilizamos todos os conceitos em neonatologia e evitamos entrar nas questões de conduta. Por exemplo, se uma criança tem com suspeita de sepse e é iniciado antibiótico, a capacitação não vai entrar nesses detalhes no treinamento. Existem vários conceitos que são mais do domínio do médico, e o treinamento não objetiva entrar nesse detalhamento para não perdermos o foco daquilo que é realmente importante dentro do transporte.
11) Na minha maternidade essa situação que o senhor falou acontece muito: não tem a vaga para a gestante de risco e depois vem o recém-nascido transferido e muitas vezes chega em condição ruim. Devemos rever isso, certo?
Concordo plenamente. Trabalho numa unidade em que a superlotação acontece com frequência e há uma série de solicitações de obstetras para remover gestantes. Muitas vezes negamos a transferência por não ter vagas na unidade neonatal. Mas geralmente nos arrependemos porque se essa criança nasce num local inadequado ela vai acabar sendo transferida de qualquer maneira. Então, o que fazer com isso? Aí entra o processo de melhoria da regionalização do atendimento, passa por readequação da quantidade de leitos, etc. e esse é um assunto que precisa ser revisto. A criança que nasce em local adequado à sua necessidade clínica, mesmo que não tenha vaga, ela vai receber um cuidado melhor e pode nem precisar de um suporte tão avançado quanto o que precisaria se ela viesse transportada. Acho que se tem trabalhado muito nessa direção, e este Portal é justamente uma ferramenta de discussão muito interessante para isso.
12) Achei muito interessante suas orientações de como evitar hipotermia. Esse material deveria ficar sempre preparado, certo?
Essa é uma questão muito importante e há a questão da previsibilidade, não acontece com frequência, mas vai acontecer. Então, a equipe daquele hospital de menor complexidade, que não está habituado com o cuidado com o RN grave, precisa estar preparada. O material precisa estar checado, os protocolos disponíveis, equipamentos funcionando etc. Este é um material simples, mesmo porque o papel desse hospital é fazer o atendimento de menor complexidade. Ma é preciso ter a condição mínima que é basicamente cuidar das vias aéreas, da respiração, da circulação e da temperatura de maneira adequada. Isso vai melhorar muito o prognóstico da criança e reduzir o estresse da equipe. Com isso, ganhamos muito com o cuidado neonatal até que se consiga, um dia, um processo bem regionalizado em que a criança somente nasça onde tem que nascer, e, mesmo, assim, haverá o transporte dentro do próprio hospital com as mesmas regras.
—
*¹ ABCDE do Trauma é uma série de precauções criadas para proteger a integridade de um paciente em situação de risco. A sigla é referente aos seguintes termos:
A – airway (vias aéreas)
B – breathing (respiração)
C – circulation (circulação)
D – disability (incapacidade) *avaliação neurológica*
E – exposure (exposição) *prevenir hipotermia*
*² PORTARIA Nº 371, DE 7 DE MAIO DE 2014 – Institui diretrizes para a organização da atenção integral e humanizada ao recém-nascido (RN) no Sistema Único de Saúde(SUS).