Sistematizamos as principais questões enviadas pelos usuários do Portal durante Encontro com o especialista Dr. Gabriel Variane, médico neonatologista, realizado em 24/05/2018. Nesse Encontro, o tema Asfixia Perinatal foi abordado desde a sua fisiopatologia, passando por uma visão geral dos achados e manejo clínico, avaliação neurológica e tratamento, em especial, da hipotermia terapêutica.
Trecho do Encontro: introdução e explanação inicial do Especialista sobre o tema
É muito importante ter um protocolo muito bem estabelecido para realizar a hipotermia terapêutica que, indo além do simples resfriamento da criança, requer uma série de metodologias, recomendações e um grande alinhamento e capacitação das equipes das unidades neonatais. A hipotermia terapêutica, quando indicada, deve ser mantida por 72h e o reaquecimento deve ser realizado de forma lenta e gradual e o monitoramento da temperatura central, esofagiana ou retal, deve ser realizado de maneira contínua.
O especialista ressaltou, ainda, ser fundamental realizar o monitoramento cerebral de bebes asfíxicos pois nestes casos a incidência de crises convulsivas é altíssima, especialmente as de caráter subclínico, e o status epilético está associado a piores prognósticos. Logo, crises convulsivas devem ser prontamente identificadas e tratadas forma agressiva.
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Trecho do Encontro: perguntas dos usuários e respostas do Especialista
1) Gostaria de saber qual a experiência na utilização de eritropoetina junto à hipotermia terapêutica.
A eritropoetina em altas doses, como as preconizadas nos estudos (até 1.000 UI/Kg por cinco dias) tem se mostrado como uma das terapias mais promissoras. Então já posso implantar este tratamento no meu serviço, temos evidência científica forte o suficiente para isso? A resposta é não; a eritropoetina para este fim ainda está no âmbito das pesquisas. Como falei, existem estudos que fase 3, com populações mais importantes, para avaliarem a eficácia, a eficiência do uso desta medicação, mas ainda não temos esses resultados. Então, realmente, o ideal é utilizar essa droga ainda no cenário da pesquisa, mas isso é bem promissor.
2) Ainda existem muitas unidades no Brasil que não praticam a hipotermia por falta de EEG à beira do leito e de termômetro transesofágico. Mesmo assim podemos iniciar o processo, apenas avaliando a temperatura retal?
Pensando em resfriamento, vou bater na tecla que o método preconizado, no mundo inteiro, é o uso de um colchão térmico, que nos dá muito mais segurança. Mas existem diversos centros no Brasil que ainda realizam a hipotermia passiva, às vezes com o uso de bolsinhas de gelo e tentam promover, assim, o resfriamento. Muitos centros descrevem uma experiência positiva, porque realmente a chance de você estar fora daquela temperatura alta é maior, mas quanto maior a experiência da sua equipe, maior a experiência da própria enfermagem, melhor será esse trabalho. O que não pode realmente ocorrer é fazer hipotermia se você não tiver acesso à temperatura central (que pode ser retal ou esofagiana). Então, se você não tem o termômetro esofágico, poderá fazer a temperatura retal, mas é importante que ela seja uma temperatura central e contínua, jamais apenas medindo temperatura axilar de forma intermitente. O mais comum, quando você desliga o berço aquecido dessas crianças, é que elas façam temperaturas verdadeiramente baixas, por vezes menores do que 31-32 graus e, sendo assim, é preciso avaliar a temperatura central de forma contínua pois, se a criança começar a fazer temperatura menor do que 31-32 graus, os efeitos colaterais do resfriamento virão de forma muito importante, como, por exemplo, as arritmias e até mesmo arritmias fatais. Por isso, muito cuidado quando forem resfriar esse bebê, sem controlar a temperatura continuamente. Sem alguma forma de avaliar, não dá para fazer.
3) Nos casos de síndrome hipóxico-isquêmica grave, qual a resposta ao tratamento com hipotermia terapêutica? E no caso com sequelas, quais as opções de tratamento para melhorar a espasticidade?
A hipotermia terapêutica se mostrou muito eficaz para reduzir mortes ou sequelas neurológicas em recém-nascidos com encefalopatia moderada ou grave. Se a gente dividir essas duas populações (a dos bebês que têm encefalopatia moderada e a dos que têm encefalopatia grave) ambas se beneficiam, mas verdade é que os maiores resultados acontecem em bebês que têm encefalopatia moderada. Esta é a parcela que mais se beneficia do tratamento por hipotermia terapêutica. Os bebês com encefalopatia grave se beneficiam, mas os resultados não são tão consistentes ou, na verdade, o benefício não é tão importante. Sabemos que, mesmo com o uso da hipotermia terapêutica, os bebês com encefalopatia grave têm um alto risco de morte e, ainda, um alto risco de sequelas neurológicas moderadas a graves. É por isso que ainda existem tantos estudos com terapias coadjuvantes da hipotermia terapêutica. Sabemos que a hipotermia terapêutica para esse grupo é importante, ela ajuda, mas mesmo assim uma parcela significativa terá sequelas neurológicas moderadas a graves.
Em relação à condução do tratamento dessa criança, é fundamental o acompanhamento, de preferência multidisciplinar, com neurologia e fisioterapia. A gente sabe que, para o estímulo da neuroplasticidade, essa população precisa ser acompanhada de perto. Todo bebê com asfixia perinatal, especialmente os graves, precisam de um acompanhamento mais constante ainda.
4) Ainda vemos com frequência uma tendência à prescrição de aminas vasoativas em recém-nascidos asfíxicos devido à bradicardia (Frequência cardíaca em torno de 100-110 bpm), assim como de sedação e fenobarbital profilático, levando à maior necessidade de ventilação mecânica. O que você nos tem a dizer sobre o assunto e qual a sugestão para convencer os mais resistentes?
Em relação a tratar bradicardia, como falamos antes, a hipotermia terapêutica leva à bradicardia; isso é muito comum. Como falei, a FC entre 80 e 100 bpm é rigorosamente normal e, definitivamente, não é para entrar com amina vasoativa por esta causa. Você só vai entrar com amina vasoativa para essas crianças quando elas apresentarem sinais de instabilidade hemodinâmica. Sabemos, inclusive, que o ECO funcional pode auxiliar na avaliação hemodinâmica. Vários centros brasileiros descrevem uma experiência muito positiva na avaliação da hemodinâmica dessas crianças com o uso do ECO funcional.
Em relação à sedação, a grande maioria entra com analgesia, centros norte-americanos usam a morfina com muita frequência e aqui no Brasil é mais comum utilizar o fentanil. Realmente é importante lembrar que o frio leva a um incômodo e é importante avaliar o alívio do estresse (isso também é neuroproteção).
O fenobarbital profilático não deve ser usado. Vamos pensar: foi falado na apresentação que crises convulsivas em bebês com asfixia são realmente muito comuns; 23 a 60% dessa população têm crises convulsivas, sendo mais comumente no primeiro dia de vida e há um recrudescimento da incidência no reaquecimento. Falamos, também, que de 80 a 90% de todas as crises convulsivas no período neonatal são rigorosamente subclínicas, ou seja, é impossível conseguir avaliar se eu não tiver fazendo um monitoramento eletroencefalográfico contínuo. Neste caso você pode pensar: no meu centro não tenho monitoramento eletroencefalográfico, a chance destas crianças convulsionarem é enorme e se isso acontecer e não for tratado o prognóstico é pior, então, vou prescrever fenobarbital para todos. Mas qual é o problema disso? O fenobarbital, é uma droga que leva à apoptose neuronal, então também leva a injúria, então é muito errado dar fenobarbital para quem não está tendo crise convulsiva. Existem estudos com uso de fenobarbital profilático que não demonstraram nenhuma redução na incidência de lesão cerebral na população.
Em relação à ventilação mecânica, se você administrar o fentanil em doses muito elevadas, ou até mesmo o fenobarbital, talvez você não tenha necessidade maior de ventilação mecânica. Mas o ponto que quero lembrar para vocês é que a ventilação mecânica não é obrigatória em bebês com asfixia e que em uma porcentagem importante dessas crianças fazemos o esfriamento em ar ambiente. É importante lembrar que a gente precisa evitar hipóxia e hiperóxia, é precisa evitar hipocapnia e hipercapnia, e quando você está colocando esses bebês em ventilação mecânica, você precisa ficar muito mais atento para evitar tudo isso. A gente não precisa obrigatoriamente deixar o bebê entubado sob hipotermia.
E como fazer para implantar tudo isso no nosso centro? Acho que sempre basta nos utilizarmos da literatura, da evidência científica. Hoje em dia fazemos medicina baseada em evidências e temos evidências científicas suficientes para esses pontos.
5) Quais seriam as causas mais frequentes de asfixia neonatal?
A asfixia perinatal pode acontecer antes, durante, ou logo após o parto. O mais comum é que os eventos hipóxico-isquêmicos ocorram durante o parto e é muito importante estarmos monitorizando esse feto, avaliar se ele não está fazendo desaceleração, se não está tendo bradicardia cujas causas muito comuns são o descolamento prematuro de placenta, o nó verdadeiro de cordão e o prolapso de cordão. Todas essas são causas importantes que estão associadas à asfixia perinatal.
6) Por que não podemos usar cálcio e midazolam quando estamos realizando a hipotermia?
Em relação ao cálcio primeiro: os mecanismos de injúria cerebral, tanto na falha energética primária quanto na secundária, um dos mecanismos de apoptose neuronal está associado a um fluxo intracelular do cálcio. Essas crianças, frequentemente, fazem hipocalcemia, justamente por causa deste influxo. E se o neném faz hipocalcemia não sintomática e eu faço uma correção rápida, dando uma grande quantidade de cálcio para essa criança, isso é errado. É errado porque estará propiciando um maior influxo intracelular de cálcio nesta população e, por si, piorando a injúria cerebral. Então, precisamos tomar muito cuidado com a reposição de cálcio, saber que essa população faz hipocalcemia com frequência e ficarmos atentos aos possíveis sintomas.
Não há necessidade do uso frequente de midazolam, inclusive alguns estudos mostram que esta droga em altas doses leva a uma piora no neurodesenvolvimento destas crianças e outros estudos citam uma possível apoptose neuronal. A verdade é que não é necessário utilizar midazolam de rotina nessa população para sedação. O que fazemos é a analgesia com fentanil ou com morfina.
7) Qual o prognóstico para bebês que nascem com asfixia?
O prognóstico é um assunto importante e, em alguns casos, é algo difícil de se predizer mas informações prognósticas são importantes para nós e muito mais importantes para a família. Acho que saber sobre o prognóstico é importante para todos, especialmente para os que se deparam com a situação de ter que falar com os pais que tiveram uma gestação tranquila e que, de repente, sabem que seu bebe está com um problema grave, como é a asfixia, que pode levar ao óbito ou que, mesmo que ele sobreviva, tenha grande chance de ficar com sequelas neurológicas importantes. Então a gente ter algumas informações prognósticas e poder falar para os pais em probabilidades é algo muito útil no cuidado com essas crianças. Alguns fatores nos permitem avaliar o prognóstico dessas crianças é justamente, antes de tudo, observar que, se a encefalopatia clínica dela for moderada, o prognóstico será muito melhor do que se a encefalopatia for grave. Alguns exames ajudam bastante, especialmente o EEG que se em até 48-72 horas após a hipotermia mostrar a recuperação para atividade cerebral de base normal, ou seja, ondas cerebrais normais, geralmente estará associado a um prognóstico muito bom. Outro exame que traz um prognóstico fenomenal é a ressonância magnética que avalia o insulto cerebral dessa população. Quando feita nos primeiros dias de vida, alguns estudos falam entre o quinto a o décimo primeiro dia ou até ao final da segunda semana, traz muita informação prognóstica. Outro aspecto interessante de observar é que a hipotermia terapêutica diminui a incidência de lesões cerebrais na ressonância, que é mais um fator para mostrar que este tratamento realmente tem efeito neuroprotetor.
8) O que falar sobre parto normal e asfixia neonatal?
A indicação da via de parto é totalmente obstétrica, então falar que o parto normal aumenta a incidência de asfixia neonatal não é correto. A via de parto preconizado no mundo inteiro é a via vaginal. O importante, seja no parto cesáreo ou no parto normal, é monitorizar muito bem o feto, e fazer uma assistência bem adequada para evitar ou minimizar as chances de um evento hipóxico-isquêmico nos momentos próximos ao parto. Então, considero que o mais importante é que a assistência seja muito bem feita.
9) Existem especificidades em relação a avaliação do índice de Apgar para esta população, especialmente em prematuros abaixo de 1500g?
Antes mais nada, devemos falar sobre a importância do Apgar na avaliação do insulto hipóxico-isquêmico, o que às vezes é motivo de importante discussão. No estudo de Shankaran, o Apgar de décimo minuto menor ou igual a 5 ou a presença de suporte ventilatório com dez minutos de vida, tem rigorosamente a mesma importância na hora de indicar a hipotermia terapêutica. O Apgar por si só, de forma isolada, é um preditor ruim para avaliar insultos hipóxico-isquêmicos, seja na população maior de 35 semanas de idade gestacional, que é a população possivelmente elegível para o protocolo de hipotermia, como para os prematuros, o Apgar continua sendo como um método isoladamente ruim para predizer o insulto hipóxico-isquêmico. É preciso avaliar essas crianças de outras maneiras.
10) Qual o tempo recomendado para reduzir a temperatura corporal do RN ao nível desejado?
O ideal é resfriar a criança em até seis horas de vida para obter o maior efeito neuroprotetor, assim que indicada a hipotermia ou seja, assim que o RN preencher todos os critérios de inclusão no protocolo de hipotermia terapêutica, é preciso resfria-lo até uma temperatura entre 33 a 34 graus de temperatura corpórea central, com termômetro retal ou esofagiano. O ideal é que essa indução seja rápida, o que se preconiza idealmente é cerca de 30 minutos. Quero mais uma vez bater na tecla que, uma vez resfriada, a criança precisa ficar na hipotermia por 72 horas para garantir o efeito neuroprotetor. Se houver algum centro desviando do protocolo de condutas isso é errado. Uma vez indicado o protocolo de hipotermia, persista até o final. E ao chegar nas 72 horas, bato novamente na tecla de que o reaquecimento é um momento de muita precisão, de 0.2 a 0.5 graus por hora; mais do que isso vai levar a prejuízos, causa instabilidade e pode levar à apoptose neuronal inclusive.
11) É absolutamente inválido iniciar a hipotermia do RN após as seis primeiras horas de vida?
Existe um estudo grande que evidenciou que evidenciou que quando você resfriava bebês entre 6 a 24 horas de vida, e nesse estudo é importante salientar que eles resfriaram as crianças por 96 horas, um possível benefício realmente aconteça nessa população, mas não se conseguiu mensurar quanto, mas que de fato é um benefício menor do que se a gente resfriasse nas primeiras 6 horas. Então, existem alguns centros que estão resfriando crianças entre 6 a 24 horas, mas o mais importante é lembrar que o efeito neuroprotetor, mesmo que exista, não será o mesmo.
12) Como deve ser feito o reaquecimento? Quais os principais efeitos colaterais que podem ocorrer durante o reaquecimento do RN?
O reaquecimento é um momento crítico para essa criança, muito comumente pode haver hipotensão e a incidência de crises convulsivas aumenta de forma importante e a incidência de apneia é um pouco maior também. Então, por tudo isso, você precisa estar avaliando essa criança. E se você estiver fazendo monitoramento cerebral e, mais uma vez, o preconizado é que se faça, lembrar que a incidência de crises convulsivas vai aumentar muito nesse momento.
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